quarta-feira, 8 de setembro de 2010

CONTANDO A VIDA 4

Na crônica desta quarta, o cronista-papai José Carlos Sebe fala sobre o nuançado relacionamento pai e filho, evocando Santo Agostinho e mandando beijos.



A HUMANIZAÇÃO DOS PAIS.
José Carlos Sebe Bom Meihy

Qualquer reflexão sobre a paternidade remete a riscos, pois se incorre sempre na possibilidade de nada dizer de novo. Ao mesmo tempo, no entanto, é preciso tentar porque a repetição tem sentido. Um bom começo pode sugerir a oportunidade de desmistificar o padrão modelar tirânico. Sim, em culturas de cunho religioso, como a cristã, por exemplo, a matriz da idéia de pai reproduz a imagem do Padre Eterno e então se estabelece, por princípio, a autoridade como regra. O patriarcado se apresenta como maneira de organizar as relações familiares, que tem no pai o centro de tudo. É em torno dele que gravitam as normas de conduta e ele é idealmente o chefe, a cabeça, o detentor da última palavra. O imaginário religioso, aliás, caprichou na figura: um velho de barbas brancas pairando nas nuvens, sempre sisudo e observador atento, que, do alto de sua empáfia, tudo governa e está pronto para julgar, condenar ou absolver. É verdade que o adjetivamos Deus Pai, mas não há como fugir do temor que nos faz reconhecer pecadores em perigo, candidatos constantes à remissão e sujeito a castigos formidáveis. A inviabilidade de fugir do controle desse ser onipotente, onisciente, onipresente nos domina. E por séculos tivemos que replicar em nossos parcos domínios aquela proposta que nos transforma em crentes tementes a este ser sempre superior.
Os tempos mudam. Muito. Ainda que se mantenham pressupostos, as alterações afetam também as divindades construídas pelos humanos. No melhor da dinâmica das transformações, observamos o direito à fragilidade paternal humana. Por felicidade, não mais se considera pai apenas o progenitor. No espelho da modernidade, a figura paterna reflete pessoas que adotam filhos, companheiros que assumem crianças alheias e transferem para o homem o suposto vigorado para mulheres que dizem serem os genitores daqueles que criam. E há, entre tantos casos, exemplos lindos de pais postiços. Não é sem encantamento que vemos a proliferação de pais homossexuais e isto é absolutamente comovente. Ademais, acho linda a expressão pai adotado. Em vez de filho adotado, a inversão se reveste do que de mais refinado pode haver nas relações familiares.
A humanização da paternidade carrega outras virtudes. A aceitação do pai como homem, ser falível, é sem dúvidas algo tocante. Sim, pais acertam muito, mas erram também. Falham, se contradizem, cometem injustiça, nos indicam caminhos tortuosos, tudo isso, mas ao lado de acertos outros, ao se colocarem como passíveis de equívocos nos dão oportunidade de tangê-los amorosamente. Também aos pais se aplica a regra do afeto conquistado. Em detrimento do amor irrestrito, peremptório, vertical, cabe pensar na ternura construída. É aí que entra o perdão. Falo da graça no sentido agostiniano, no estágio superior dos sentimentos clementes, daqueles que nos permitem ver os erros paternos e nos dão a honra de perdoar e ser redimidos na medida mesma do inverso.
Sim, não há pai que não tenha se equivocado, e, professo que é no reconhecimento afetivo dessas atitudes que negociamos a afeição. Em complemento, a figura ameaçadora do deus cristão, justiceiro implacável, se amiúda no amor filial que, em vez de atirar pedras nos eventuais erros paternos conforma situações com a compreensão. Sim, estou garantindo que amor se edifica, negocia, borda na tela da vida parental desenhos insuspeitados, lindos nos improvisos da vida comum. O mapa do amor filial é acidentado, tenhamos certeza. A rota da paternidade também o é, e um apenas faz sentido se for projetado no outro. E aí tudo se explica, desde a ausência de pais que não sabem ser presentes até os que amam demais. A vivência complexa do âmbito familiar inscreve o diálogo, mesmo quando ele parece ser impossível ou apenas acontecer nos momentos de crise. E é bom garantir que o amor entre dois seres do mesmo clã se fia nas diferenças.
Beijo todos os pais, mas meu mais terno abraço é dado àqueles pais que se exercitam na renúncia da autoridade. Multiplico beijos aos filhos, que, olhando os pais, aprendem que não há amor sem perdão.

(Na minha adolescência, Renato Russo ensinou que meus pais também estavam aprendendo, como eu...)

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