terça-feira, 30 de outubro de 2018

TELINHA QUENTE 333


Roberto Rillo Bíscaro

A profundeza das águas no título da minissérie Deep Water (2016) vai bem mais além das penhascosas praias australianas, onde boa parte da ação se passa. Nos anos 80/90, dezenas de gays foram chacinados na região e os crimes permanecem sem resposta, porque afinal, lá é a terra do Mad Maxo.
Quando a SBS exibiu a quadra de episódios, fez disso evento televisivo, lançando também o documentário Deep Water: The Real Story, deixando clara sua intenção de unir entretenimento com denúncia. A Netflix tem Deep Water em seu catálogo; poderia fazer o mesmo com o documentário.
Os detetives Tori Lustigman e Nick Manning (aquele bigode anos 70 tá mais pra Narcos, mano!) investigam a morte de um homem gay e Tori não demora a perceber que o caso está ligado a uma série de crimes não resolvidos, inclusive o de seu próprio irmão, um dos tantos homossexuais rejeitados pela família e que acabaram mortos na praia e ninguém se importou.
Subjacente à competente narrativa detetivesca, Deep Water é sobre como o patriarcado heteronormativo caucasiano não enxerga nada a sua frente, a não ser a si. Aproveitando que a TV australiana também passa pela sua era doirada, Deep Water desafia essa muralha através da detetive Tori, inegavelmente o centro e ponto de vista pelo qual lemos os acontecimentos. Ela tem que se haver com o descaso que seus superiores tiveram para com os crimes; com a negação do pai, que nunca aceitou que o filho fosse gay e com seu próprio fardo de sentimento de culpa: aos 11 anos, foi ela quem acabou impulsionando o irmão a desembestar pra fora de casa na véspera do Natal, quando foi morto.
Fãs do sucesso Orange Is The New Black gostarão de saber que Yael Stone, a Lorna Morello (a Wikipedia que me contou, porque Orange...não me interessa) domina Deep Water. Sua Tori Lustigman é a policial durona e séria, que de vez em quando desaba, especialmente quando se dá conta de que como mulher, sua posição não é muito distinta dos estrangeiros e homossexuais. Claro que sempre tem aquelas que não enxergam isso, mas daí são moídas na porrada e parecem gostar.
Apesar do conteúdo potencialmente pesado e do subtexto horrendo, porque escancara injustiça apavorante, Deep Water não é ponderoso, porque o roteiro não proselitiza; é sólido show policial com tons sociais, como muitos.
Por mais boa vontade em representar os gays com simpatia, Deep Water derrapa na rasura de representá-los todos – até os mais velhos – com corpões sarados e blábláblá. Claro que isso faz parte dum contexto maior televisivo que é seu falso caráter inclusivo: tem gente de tudo quanto é cor, mas de preferência bombado, mas duvido que todo mundo em Sydney seja tão sarado, só porque lá existe vôlei de areia.

segunda-feira, 29 de outubro de 2018

CAIXA DE MÚSICA 337


Roberto Rillo Bíscaro

Desde que Annie Haslam e Michael Dunford revitalizaram o Renaissance, em 2009, a banda não parou mais de fazer shows. O falecimento de Dunford não deteve a veterAnnie, que até lançou material inédito de estúdio, em 2014, resenhado no blog.
Ano passado, os britânicos excursionaram pelo norte dos EUA e em diversos espetáculos tocaram com a Renaissance Chamber Orchestra. Mediante crowdfunding – termo cybercorporativo pra vaquinha – entre fãs, conseguiram verba pra financiar que uma das performances fosse filmada e lançada em CD duplo e DVD.
Assim, há algumas semanas saiu A Symphonic Journey, registro da apresentação no Keswick Theater, na cidade de Glenside, na Pennsylvania, dia 27 de outubro, de 2017. Este texto trata do CD duplo; não tenho mais saco há anos pra ver show em DVD, streaming, o que seja.
Com carreira de décadas e repertório imenso, ficam lacunas, como a ausência de Northern Lights, única canção a arranhar o fundinho do Top Ten de sua terra natal. Talvez pudesse estar no lugar de Island.
O Renaissance é o protótipo da banda de rock progressivo, que serve de alvo perfeito pra detratores que sempre se queixaram da ausência de rock na fórmula. De fato, o único momento mais roqueirinho é a derradeira Ashes Are Burning e mesmo assim, porque é a hora em que cada músico tem seus segundos individuais pra brilhar, então há uma guitarra mais proeminente. Mas, o piano é jazz e o predomínio, claro, é orquestral.
E fãs do lado estritamente sinfônico não terão do que reclamar. A instrumentação é suiçamente precisa e a voz da setentona Annie Haslam impressiona pela manutenção do alcance e cristalinidade. A folky At The Harbour, com seu delicado arranjo, destaca à perfeição essa voz. Pra quem gosta de virtuosismo aqui e acolá, Haslam ainda tem fôlego, como no apoteótico final de Mother Russia. Essas canções foram feitas com pretensões orquestrais, então os oboés e cordas caem perfeitamente. Mother está imperial, assim como A Song For All Seasons, Prologue e A Trip To The Fair, esta última também alvo perfeito pros acusadores das letras do prog sinfônico não passarem de desculpa pra variações instrumentais. Que seja, mas é lindo.
Felizmente, foram incluídas faixas do renascimento desse milênio e que se encaixam muito bem aos clássicos sinfônicos dos 70’s. A longa e variada Symphony Of Light e a maviosa Grandine Il Vento demonstram que o Renaissance deveria lançar mais material inédito de estúdio. Sem se preocupar em ser “acessível”. Os fãs que restaram esperamos outro Scheherazade & Other Stories!
Até porque já tentaram ser mais concisamente pop e de nada adiantou em termos de vendagens e paradas de sucesso. Há quarenta anos, um par de álbuns trouxe umas coisas mais tocáveis em rádio, tentativas que A Symphonic Journey não esquece, porque produziu gostosuras folk como Carpet Of The Sun, com sua cornetinha que prenunciava em 7 anos o tema de abertura de Dynasty (!) e Kalynda, delicada balada pescada do desnorteado Azure d’Or (1979), no qual o Renaissance buscava em vão um novo rumo, após o terremoto disco music e o tsunami punk.
Ainda é muito prazeroso jornadear com o Renaissance.

domingo, 28 de outubro de 2018

UNINDO DIFERENÇAS

Roberto Rillo Bíscaro

A superabundância de notícias da contemporaneidade pode ser sufocante, porque a quantidade de fatos ruins parece avolumar-se diariamente. Relaxar e tentar esquecer a enxurrada de negatividade é imperativo para nossa sanidade.

Duas leves comédias francesas no catálogo da Netflix cumprem essa tarefa, com bônus: mostram que há gente fazendo coisas positivas, que tentam diminuir as distâncias entre as diferenças, ao invés de alargá-las. Nenhuma delas logrará entrar para a história do cinema como obras-primas, mas garantem boa hora e meia de fuga para um mundo que reconhece a existência das tensões das quais o expectador tenta escapar, ao mesmo tempo que lhes oferece soluções – ainda que simplistas.

Que Mal Eu Fiz a Deus (2014) faturou alto nas bilheterias francesas, com sua história de integração multirreligiosa e étnica. Os maduros Claude e Marie são católicos conservadores, que tiveram que engolir os casamentos de suas filhas com um muçulmano, um judeu e um chinês. A esperança de que a quarta filha se casasse com um caucasiano é estilhaçada, quando ela anuncia seu noivado.

O roteiro joga com os estereótipos e as piadinhas nem tão inocentes a respeito de cada etnia/religião. Às vezes, tais generalizações ou chistes levam a discussões. Quem já não presenciou pais/tios tentando achar alguma boa qualidade em genros/noras ou falando mal dos parentes após lauto almoço de família? Esse é o universo de classe-média alta de Que Mal Eu Fiz a Deus.

Em uma nação lotada de imigrantes, todos os membros da família são nascidos na França, mas a mensagem é a possibilidade de se conviver com as diferenças religiosas, ressaltando o que há de comum entre as pessoas. E nesse quesito, o pai do novo noivo – embora irritante, às vezes – é exemplar, ao mostrar que um não-caucasiano pode ter os mesmos preconceitos do que aqueles. Mas, em se descobrindo a mínima humanidade comum, é possível viver em harmonia.

A Netflix optou por deixar o título em inglês para a produção do ano passado, He Even Has Your Eyes. Estruturalmente bem parecida a Que Mal Eu Fiz a Deus, a película também brinca com a inversão de um lugar-comum. Casais brancos anônimos e famosos vivem adotando crianças afrodescendentes. Mas, como seria um bebê branquinho fosse adotado por um casal de negros?

Por ser comédia que não pretende tecer tese de psicologia comportamental ou sociologia, He Even has Your Eyes aborda de leve as reações esperadas em tal situação, como confundir a mãe adotiva com uma babá e a inicial repulsa da colorida avó materna senegalesa e de seu durão marido, bem ao modo dos pais do noivo de Que Mal Eu Fiz a Deus.

Sem entrar no âmbito religioso, a integração aspirada em He Even Has Your Eyes é étnica e insiste no conceito de família estendida, que não precisa ser o modelo dos comerciais de margarina para ser funcional e feliz. 

sexta-feira, 26 de outubro de 2018

PAPIRO VIRTUAL 128


Roberto Rillo Bíscaro

Enquanto lia com interesse a ducentena e meia de páginas de Desamparo (2018), não cessava de pensar que se tivesse sido publicado em algum centro realmente importante do capitalismo, os direitos de filmagem já teriam sido comprados, preferentemente para minissérie, já que a TV anda tão em alta e tem mais tempo pra minuciar épicos, como o criado por Fred di Giacomo.
Contista com livros publicados, Fred estreou como romancista com a obra editada pela Editora Reformatório. Desamparo é extremamente imagético e típico da geração do autor – a Wikipedia me contou que nasceu, em 1984: sem vergonha de informalizar a linguagem e ciscar na linha fronteiriça entre ficção e “realidade”. Ao final, o leitor encontra a bibliografia consultada para escrever esse romance, que tem como enredo central o início da colonização branca no noroeste paulista, no final do século XIX.
Di Giacomo nasceu na interiorana Penápolis, a metafórica Desamparo da narrativa. Mas, não é preciso ser penapolense e conhecer a história local (quem conhece?) para se envolver com a história. Como qualquer boa arte, Desamparo se universaliza e a triste história da substituição genocida de uma etnia por outra é a da espécie humana como um todo.
É esse o poder épico que o jovem conseguiu criar, utilizando fartos elementos de realismo mágico/fantástico, que encantará leitores de García Marquez, Borges, mas também aos antigos o bastante para se lembrarem de novelas como Saramandaia, que foi ao ar bem antes de Fred nascer e da qual nem este resenhista se recorda direito, mas a índia que come, come, come não remete à Dona Redonda que explodiu? Tanto o falecido Dias Gomes, quanto o jovem (not really!) game designer roqueiro hipster bebem na mesma fonte nesta pós-pós-modernidade, na qual essa história de há mais de cem anos ainda faz tanto sentido.
Talvez a maior tragédia de Desamparo seja poder ser sumarizado como ainda somos e pensamos como os tataravós de nossos tetravós.  Disso tem consciência a desencantada, mas um pouco esperançosa narradora. Pena para nós – não para o livro –, que não dê realmente para crer nesse fio de esperança; soa mais como se enganar para justificar continuar existindo.
Apesar de tratar do ocaso de um povo e início do domínio de outro (que vive em briga, então pode acabar como o que exterminou), Desamparo é ágil. Atinados com nossos tempos de farta oferta de histórias em diversas mídias, os capítulos são curtos, então dá pra ler de boa no trajeto do metrô ou no pouco tempo livre que geralmente nos sobra hoje.
Alguém já disse que Fred sabiamente evitou reproduzir alguma suposta linguagem caipira centenária. Muito bem apontado. Esperto, o menino sabia que incorria no risco de pagar mico soando postiço (fake, como amam os descoletes agora), além de tornar a leitura desnecessariamente complicada e pesada. Longe de ser pedestre, a linguagem não tenta imitar sotaques, mas, é bem coloquial. Atente, porém, para algumas frases totalmente citáveis.
Ser imagético não necessariamente garantiria bom filme ou série. No máximo, grandes quadros. Desamparo motiva o leitor a querer seguir, tem reviravoltas, personagens excentricamente interessantes, cenas de ação e gore (yeah!).
Leitores mais frequentes sabem que este blogueiro é fã de ficção-científica envolvendo discos-voadores, contatos com alienígenas. Essa curiosidade é puramente ficcional. Não tenho a menor vontade de que nós terráqueos os contatemos. Pelo menos não enquanto eu esteja por aqui. Ler o sertanejo Desamparo só reforçou essa convicção: e se os ETs estiverem para nós, como os brancos para os caingangues? Melhor não arriscar: pelo menos esperem até que eu morra.
Recomendo ativamente o livro, que pode ser comprado pelo link:

quinta-feira, 25 de outubro de 2018

TELONA QUENTE 259

Roberto Rillo Bíscaro

Privacidade torna-se coisa do passado. Pras gerações bem jovens, anonimato pode ser tão alienígena quanto papel carbono.  O debate sobre o fim da privacidade acontece há anos, devido a fenômenos como mineração de dados, reconhecimento facial, uso de perfis em redes sociais, vigilância cibernética, hiperconexão, rastreamento geográfico, cyberbullying e também a ubiquidade de câmeras de segurança. Em séries policiais, é comum caçar criminosos traçando o uso que faz do cartão de crédito e rastreando celulares.
O roteirista e diretor neozelandês Andrew Niccol imaginou futuro não tão distante, em que todo mundo estará catalogado e nossa mente funcionará como eterna internet/rede social/banco de dados. Todas as memórias poderão ser acessadas e ao se andar pelas ruas, legendas descreverão pessoas e objetos. Essa é a premissa de Anon (2018), produção britânica que a Netflix anexou a seu catálogo.
Numa cinzenta, modorrenta e semideserta Nova York (há um galerista do Upper East Side, isso é Grande Maçã), um(a) hacker está acessando o ponto de vista de indefesas vítimas, que acabam assassinadas com balaço no meio dos olhos. A principal suspeita é uma jovem hacker, experta em apagar experiências indesejáveis do CV memorial e insertar outras, mais palatáveis ou socialmente aceitas. Além disso, Anon é capaz de construir cenas e inseri-las com maestria no fluxo da memória, além de saber manipular até as imagens que alguém estão vendo no presente, desde que consiga acessar o cérebro da pessoa.
Complicado superconceito de ficção-científica, que necessita de muita explicação/exposição, a fim de erigir e solidificar a mitologia. O preço pago é lentidão e uma história policial que jamais decola e tem desfecho morno. O esforço está quase todo canalizado em apresentar/compreender o mundo ficcional de Anon, tanto por parte do realizador, quanto do espectador.
Aparentemente, a vontade era fazer uma espécie de cybernoir. Sal Frieland é o policial deprimido e cansado, que se encanta pela misteriosa antagonista.
Quieto e escuro, Anon não é indicado pra fãs de thrillers eletrizados, mas nerds, geeks, fãs de sci fi cabeça e toda uma nova geração enamorada desses temas por causa de Black Mirror, poderão ficar grudados na tela pra absorver o conceito.
Eu fiquei.

quarta-feira, 24 de outubro de 2018

CONTANDO A VIDA 254

BRASIL VISTO DE LONGE... 

José Carlos Sebe Bom Meihy 


Sou um professor moldado no mais velho estilo: preparo aulas e apresentações acadêmicas. Todas. Nunca improviso, nunca. Sim, a cada nova aventura dessas me reinvento, e faço isto em respeito a mim mesmo. Não é capricho, não é insegurança, não é detalhe, mas também não é por prazer ou gozo. É, sobretudo, por respeito ao meu ofício e à repetição de modelos. Aprendi isso com mestres que me foram marcas definitivas. Sempre cultivo novidades e com isso me instruo para mediar conhecimentos, expor interpretações e aprender com a experiência alheia. Por mais conhecido que seja o tema, por mais experiência que tenha na matéria, ainda volto aos roteiros de preparação como se fora a primeira vez. Lembro-me à propósito de uma “quadrinha” de um estimado mestre poeta, Cesídio Ambrogi, que declamava, como que em oração, algo próximo de “hoje em minha aula derradeira, faço-a como se fosse a primeira”. Sim, sempre dou aula como se inaugurasse uma estrada indeterminada. Imaginem então quando tenho que cumprir esta missão em outra língua, em país diferente. Pensem também que mantenho o desafio do bom preparo para as apresentações, e até chego ao requinte de escovar os dentes antes de cada novo intento. 

Por motivos variados, a vida tem me proporcionado encontros, cursos, conferências no exterior. Os Estados Unidos, em diferentes oportunidades, tem sido cenário de apresentações. Por generosidade de amigos e pesquisadores brasilianistas, creio que passei por grande parte das escolas que de alguma forma prestam atenção no Brasil. Foi assim que, dias atrás, estive em uma prestigiada Universidade em um desses roteiros. Falava em uma série sobre “Brasil contemporâneo”, e mais precisamente sobre a superação da ditadura nos anos de 1980. Fazia parte de minha pauta assuntos relativos a abertura política, aos movimentos derivados da construção de um ambiente democrático, mais aberto. E no enredo dissertativo arrolava questões afeitas ao cinema, música, teatro. Minha preocupação estava centrada na articulação de arte e cultura. Devo dizer que no melhor estilo norte-americano, eu lia o texto da apresentação. Tudo correu bem até que no final e, durante a abertura para perguntas, o mediador deu voz a um jovem da plateia de cerca de 40 pessoas que, em português do Brasil, perguntou-me em voz alta e impertinente: professor que acha do livro “A verdade sufocada: história que a esquerda não quer o Brasil conheça”? Essa, diga-se, é uma peça escrita pelo Coronel reformado do Exército Brasileiro Carlos Alberto Brilhante Ustra, publicada em 2006. Foi um choque para mim, pois o rapaz, além de desviar o tema, mostrava certa arrogância e intenção venenosa. Demorei alguns minutos antes de responder e duas situações me vieram à mente: 1- o autor foi o primeiro dos militares condenados pelas práticas confessadas de tortura; e 2- da declaração exaltativa que o então deputado Jair Bolsonaro expressou ao votar a favor do impedimento da ex-presidente Dilma Rousseff. Na verdade o autor da obra referenciada fora chefe das sessões de tortura operada no DOI/CODI, organismo máximo da repressão política do regime militar. Tenho por costume não ser deselegante principalmente em ambiente cerimonioso e alheio à minha cultura. Não tinha porém como fugir da questão. Respondi com naturalidade dizendo ao jovem que não conhecia a obra citada, mas que tinha informações biográficas capazes de instruir minha rejeição ao texto produzido por alguém que expressava sua visão pessoal em contraposição a uma alentada historiografia - muito bem documentada, aliás. 

Olhando para o público, com inglês impecável, o rapaz se proclamava fiador de ideias como “justiça feita em nome da defesa anticomunista”, filtrando a tortura como se fosse “ato redentor”, algo “contra terroristas que queriam implantar o modelo cubano no Brasil”. Por um momento deixei-o falar até que outra pessoa pediu minha opinião. Foi a chance que tive para apresentar minha visão de historiador comprometido com versões fundamentadas da disciplina História, e não com visões personalizadas segundo uma defesa que, em últimas palavras fere os direitos humanos e enquadra a democracia em percepções justificadoras de limites. Acho que minha serenidade serviu de ponte para que alguém do público, uma senhora americana, tomasse a palavra em favor da livre expressão, ponderando que o livro em questão poderia/deveria ser lido, mas que o comprometimento da liberdade jamais seria matéria de coerção, em particular de elogio à tortura. Foi o bastante para que outras pessoas se expressassem e daí se desse a derivação para problemas fundamentais da vida social livre. 

Ao fim, vi-me satisfeito por não ter violado regras de bom convívio. Mas meu aprendizado foi além disso, pois pude também absorver o sentido universal dos direitos humanos, e, nessa perspectiva notar o teor repressivo e condenável às manifestações de diminuição da liberdade. Meditando sobre este acontecimento entendi melhor o sentido dado ao título desta crônica: por dentro do Brasil visto de fora.

terça-feira, 23 de outubro de 2018

TELINHA QUENTE 332

Roberto Rillo Bíscaro

Série policial escandinava que não seja lúgubre, escurecida e esfriada por céus cinza, chuva e neve, com detetive deprimido(a), usando sempre a mesma roupa pode soar alienígena pra espectadores apenas dos sucessos planetários, como Wallander,  Forbrydelsen ou Bron/Broen.
Claro que os milhões de leitores do Albino Incoerente sabem de séries destoantes desse estereótipo, como Irene Huss ou Arne Dahl. Hoje é dia de conhecer outra: Dicte. A TV2 Danmark exibiu a trintena de episódios, divididos em 3 temporadas de 10 capítulos cada, entre 2013 e 2016.
Baseada nos romances de Elsebeth Egholm, Dicte é sobre a personagem-título, jornalista que retorna a sua nativa Aarhus após o divórcio. Um dos predicados da série é fugir da capital Copenhague. Com área metropolitana de mais de 300 mil habitantes, a fofa cidade é o centro econômico da Jutlândia. Essa teteia limpa, porém, esconde crimes envolvendo imigrantes, drogas e muita desdita familiar e pessoal.
Dicte Svendsen começa a trabalhar num dos diários locais, escrevendo pra seção policial. Como toda boa protagonista de série policial, os corpos não param de aparecer onde quer que esteja e praticamente todos seus amigos e familiares ficarão em perigo ou morrerão uma hora ou outra. Esse é o alerta pra quando você for fazer amizades: certifique-se de que a pessoa não seja protagonista de programa de detetive, senão, você tem sérias chances de se estrepar, especialmente se não for melhor amigo.
Dicte vive relação de cooperação e turras com John Wagner, mas sem sugestão de relacionamento afetivo. Como boa parte das séries atuais, não há muito mais espaço praqueles detetives amadores congelados num eterno presente, tipo Jessica Fletcher. Hoje, paralelamente às investigações, conhecemos e nos importamos com a vida pessoal dos sherlockes, em tramas que perpassam capítulos, temporadas. Nos seriados mais antigos, havia um sobrinho recorrente ou algo do gênero, mas quase nunca vida pessoal que durasse mais do que menção a uma festa ou congênere.
Em Dicte, os 30 capítulos também contam o desenrolar de sua vida desde que retorna a Aarhus, donde saíra não apenas devido ao casamento com Torsten, mas pra fugir da dor provocada pelos pais Testemunhas de Jeová, que lhe impuseram cruel escolha, quando tinha apenas 16 anos.
Assim, se cada caso ocupa 2 episódios, cada vez mais parte desse tempo é ocupada pelo drama (no sentido de oposto de cômico), que adiciona parentes recuperados, amigos que se envolvem com os primeiros, numa vibe bem dinamarquesa de aborto mencionado como escolha perfeitamente natural. Daria pra argumentar até que Dicte desova tanto conteúdo interpessoal da personagem na história, que os casos por vezes parecem esquemáticos. Porque, no fundo do coração, Dicte daria adulta e inteligente série dramática de mão cheia.
As personagens são bastante gostáveis e pra estrangeiros a reclamação de que o sotaque regional de alguns atores está caricato não faz a menor diferença, então dá pra amar Dicte, ver que Torsten é muito legal e ficar passado com o espetacular início da temporada 3, que me fez ficar acordado até bem mais de 2 da manhã, porque houve reviravolta de 180 graus. Mas, ficou faltando coisa depois disso, e fico feliz que essa seja a temporada derradeira.
Dicte não é obra-prima em nenhum dos subgêneros em que navega e se sai melhor no quesito drama do que no marketado policial, mas é uma delícia de assistir. Pena que nossa Netflix não a possua em seu catálogo. Se eu fosse você e gostasse de sair do circuito ianque de séries de vez em quando, começaria agora a bombardear o serviço de streaming pra que adquirisse os direitos pra América Latina.

segunda-feira, 22 de outubro de 2018

CAIXA DE MÚSICA 336

Roberto Rillo Bíscaro

Hoje, a forma magis fácil de apresentar The O’Jays é indicar o tema de abertura d’O Aprendiz:

Formado ainda nos 50’s, The O’Jays foi muito popular na primeira metade dos anos 70, produzindo clássicos funk, disco e Phily Soul. Nos 1980’s, com Kylie Minogue, fingíamos ter saudade duma era que não vivemos, cantando a letra de Step Back In Time (remember the old days/remember the O’Jays).
Não acompanho de perto a carreira do trio remanescente Eddie Levert Sr., Walter Williams Sr. e Eric Nolan Grant, mas sei que ainda fazem shows. Só achei estranho, quando soube dum novo álbum lançado em junho por uma tal Music World Music. Vi apenas no feed do Soul Trax; muito pouco pros O’Jays. Algum órgão fora da bolha geralmente noticia quando grande tem material novo, mesmo que o artista esteja no ocaso.
Too Imagine constava das novidades do Spotify, mas não confio nas datas deles. Tanto álbum com ano errado e discografia esburacada! Escutei alguns segundos da faixa de abertura e já coloquei na fila.
Na mesma manhã, um email adicional do Soul Trax elucidou o mistério. Too Imagine é maracutaia do selo; os O’Jays nem sabiam do material. Especialistas no grupo afirmam que músicas dum álbum chamado Together We Are One (2004) foram rebatizadas; vai vendo a picaretagem.
Como esse álbum (pra variar) não tem no Spotify, nem deu pra checar tudo, mas no Youtube encontrei vídeo velhusquinho duma canção chamada Together We Are One, que nada mais é do que a tal faixa de abertura da qual ouvi alguns segundos e já adicionei à minha lista. Em Too Imagine ela simplesmente se chama We Are One.
Deixo pros advogados do grupo a discussão ética e os eventuais prejuízos de rapinagem financeira de direitos autorias e integridade. Se está no Spotify, parece que acaba adquirindo aura de legitimidade, por ser tão fácil e legalmente acessível, embora sempre nos tentem convencer que não baixar mp3 justamente evitará que os artistas percam dinheiro... Oh, dear. 
 Tirante tudo isso, Too Imagine é uma delícia pra amantes da soul music de fim dos anos 70/início dos 80, onde localizava-se o baú donde as 11 canções estavam guardadas. São apenas baladas, que, tendo sido produzidas na época, apresentam todos os maneirismos e convenções de produção de então. Sonoridade da bateria, linhas melódicas nos teclados, a própria construção das canções: o refrão de Promisses arrancará lágrimas de coroas de meia-idade que amavam música lenta entre os anos 78 a 83.
Exceto pelo jazz aveludado anos 1950 de When Sunny Gets Blue (que a gravadora não teve coragem de alterar o título porque é standard), o restante do material flutua em alguma sub-variante do pop ou urban soul romântico. Algumas faixas com vocais mais delicados, como Too Pretty For Words, mas a maioria com aquela saudável competição pra ver quem grita e dramatiza mais. Então, é show de harmonia vocal linda em faixas como Your Place Or Mine, Can’t Live Without It, Invitation ou Last Time.
 Já que a culpa não é nossa de selo ter sacaneado os O’Jays e o material está disponível em serviço pelo qual pagamos, joguemo-nos, porque vale a pena.
Keith Sweat foi um dos primeiros disseminadores do new jack swing ou swingbeat, estilo híbrido, popular entre o fim da década de 1980 e meados da seguinte, que mesclava os ritmos, samples e técnicas de produção do hip hop com o som urban contemporary do R&B. Populares na época, como Janet/Michael Jackson, Club Nouveau e o New Edition esbaldaram-se em swingbeat.
Sweat jamais deixou de lançar álbuns, eu que não presto a devida atenção, por isso comi barriga feio com Dress to Impress (2016), cujas 16 faixas agradarão em cheio aos ouvintes mais maduros de FMs tipo Alpha e Antena Um e cresceram ao som e/ou à influência de Marvin Gaye anos 80, Barry White, urban soul e quiet storm. Em sua maioria, são slow jams xavecando mulherada, falando de fazer amor a noite toda, cantadas em vocal que de vez em quando entra em falsete. Easy listening soul, supergostoso, que de vez em quando fica sensacional, como no dueto Just The 2 Of Us ou em solos como em Back and Forth e Missing You Like Crazy.
Quem quiser treinar números em inglês, experimente contar quantas vezes Keith canta “baby” e “girl” ao longo de Dress to Impress, que peca por ser longo demais, de mais do mesmo. Fãs de sons de cetim vão gostar; a fórmula é pra nos conquistar, mas se menos especiais como Can’t Let You Go, Say e Get It In saíssem, daria pra curtir melhor a derradeira Let’s Go to Bed, que atinge níveis sublimes de Harold Melvin, anos 70, em termos dramáticos de interpretação e arranjo. 

Como qualquer subgênero, a soul music e seus afluentes necessitam de sangue novo pra continuar fluindo. Sorte que as veias continuam abertas e talentos despontam não apenas no tradicional território norte-americano.
Steffen Morrison é um desses novos expoentes e sua procedência pode até espantar de tão “unsoul”: nasceu no Suriname, mas foi criado e reside em Amsterdan. Seu site é em holandês, inclusive!
Seus pais incutiram nele o amor por Otis Redding, James Brown, Mavin Gaye, mas o barítono também aprecia Rolling Stones e gente mais novinha, como Macy Grey e Bruno Mars. O entusiasmo com que aborda as 11 faixas do álbum Movin’ On, lançado em março, contagia e deixa antever artista de futuro e peso.
A faixa-título/de abertura é sensacional locomotiva com baixo retumbante e naipe de metais à Memphis, porque sendo país de proporções continentais, claro que a música norte-americana também não soa a mesma em todo o território nacional, como a daqui. Movin’ On tem a intensidade e garra pra ser uma das melhores faixas do ano no subgênero.
E Movin’ On, o álbum, enfia mais 9 grandes canções, com grandes performances vocais e instrumentais. É um arraso atrás do outro. Tem a elegância deslizante de Old Enough to Know Better, que encantará fãs de sophisti-soul à Lisa Stansfield e Seal. We Can Have It All é baladaça que não deixa coração sobre coração, totalmente 80’s, mas sem soar pasteurizada como muito da década. Steffen opta por produção orgânica, contemporânea, nada de tecladeria artificial.
Isso acoplado aos vocais arenosos tão intensos como o de um Harold Melvin enfeitiçam a Motownzice easy listening de Little Bit Longer ou a contagiante rouquidão de All For You. Dá vontade de gritar junto “I gave it all for you...!” E nessa última, o clima retrô é atualizado com a boca-sujice do fucked up da letra.
Do It All Again tem aquele clima Hit the Road Jack, de Ray Charles, numa canção onde a letra realmente fala duma namorada que “hit the road”. Supertradição afro de canto e reposta, porque Steffen está dialogando com um coro. E é o coro que empresta tons gospel à Love Walks All Over You. Seja no R’n’B um bocadinho mais áspero de Takin Me Higher, seja na popice spiritual com a mesma guitarrinha do Spandau Ballet, de True, de The Art Of Being Human, Morrison acerta o alvo uma dezena de vezes.
A única desnecessidade é a versão acústica de Just Another Man. Só ao violão, a melodia já aparecera superior e a faixa-bônus soa como aceno pra fãs de Ed Sheeran e Cia. Só que Steffen joga numa liga léguas acima da sensaboria de Sheeran: nem deixo a versão unplugged tocar.

EXPOSIÇÃO ALBINA

Exposição ‘Preto Branco’ no Espaço Furnas Cultural

Comemorando 50 anos de carreira, o fotógrafo Davy Alexandrisky apresenta no Espaço Furnas Cultural a exposição individual “Preto Branco”, resultado de sua imersão no cotidiano do continente Africano e da sua luta pelos direitos da população albina.

‘Preto Branco’ é uma exposição de fotografias com viés humanitário. Comovido com a situação dos albinos e, em especial, dos albinos moradores nas fronteiras de Moçambique e da Tanzânia, o fotógrafo Davy Alexandrisky partiu para a “Terra Mãe” com o propósito de retratar um verdadeiro drama mundial que afeta diariamente a luta pelos direitos humanos. Pelo olhar de suas lentes, optou por mostrar poética e plasticamente o enfrentamento do albino pelo respeito a seu direito inalienável de viver, denunciando adversidades tamanhas.

“Os albinos enfrentam graves problemas sociais e de saúde, consequência da simples impossibilidade fisiológica que seus corpos têm de produzir a melanina. O caráter dessa não faculdade inata, em suas relações, tem como resultado o bullying, o preconceito, a propensão a gravíssimas doenças dermatológicas e oftalmológicas e, o mais alarmante, a ameaça as suas vidas. Preto Branco, exposição cujo nome foi escolhido consensualmente com albinos africanos, é inspirada num verso do poeta moçambicano Daniel Segundo Wate, que diz que somos almas pretas em carne branca. É o desdobramento de um projeto de pesquisa que nasce na intenção de um grito de alerta poético a fim de sensibilizar pessoas dos quatro cantos planeta sobre as realidades em que vivem os albinos, especialmente, da necessidade da mobilização mundial pela defesa dos direitos humanos destes na África. Sabe-se que, neste continente, os albinos são caçados e mutilados para que pedaços de seus corpos sejam utilizados em rituais de feitiçaria, para, supostamente, atender às demandas de curas e prosperidade econômica das pessoas que encomendam esses rituais. Em outras palavras, uma triste realidade!”, nos relata o fotógrafo.

Davy já conta com um acervo de aproximadamente mais de mil fotografias produzidas em 2017, em duas incursões ao continente Africano. Trata-se de um especialista da estética dos cotidianos que, com uma sensibilidade ímpar, vem colhendo o fruto dos seus trabalhos, sendo reconhecido nos últimos anos como uma das referência da fotografia artística no Brasil. E as provas deste título são inúmeras. A exposição é inédita no Brasil e o Itamaraty já vem articulando a possibilidade de levar as obras para o circuito PALOP, os países africanos de língua oficial portuguesa, como Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, Guiné Equatorial, além da Tanzânia, a primeira Embaixada fora de Moçambique a solicitar a visita da exposição.

O mergulho no universo da estética dos cotidianos é resultado de uma experiência vivida pelo fotógrafo em 2009/2010, quando, à época, coordenou o programa “Conexões Ponto a Ponto”, uma iniciativa do Ministério da Cultura que visava a troca de experiências a partir de parcerias entre pontos de cultura. Essa parceria, em especial, promoveu o encontro entre o Ponto de Cultura “Me Vê na TV”, coordenado por Davy, com o Ponto de Cultura do Quilombo São José da Serra. Entusiasmado com a novidade vivenciada no ambiente de cultura de matriz africana, Davy inscreveu-se então no edital “Interações Estéticas”, da FUNARTE, com o objetivo de fazer uma residência de três meses visando a troca de linguagens. Contemplado com o prêmio, desenvolveu oficinas de foto e vídeo no Quilombo São José da Serra e partilhou seu olhar de fotógrafo com os moradores da localidade, produzindo mais de mil fotografias que foram incorporadas ao acervo iconográfico da comunidade. Um dos resultados mais expressivos dessa experiência foi a exposição “Quilindo Quilombo”, que também fez passagem nas galerias do Espaço Furnas Cultural no ano passado.

A exposição “Preto Branco” conta com o patrocínio exclusivo de Furnas e Alexandrisky agora se prepara para o lançamento do livro homônimo à exposição, promovido com recursos da nova Lei de Incentivo à Cultura do Município de Niterói. Sem dúvida alguma, um ano de muita comemoração, que deságua na doçura e na luta de um artista com meio século de vida dedicado a duas de suas maiores paixões: a fotografia e o ser humano.

Serviço
Exposição: Preto Branco, por Davy Alexandrisky.
Local: Espaço Furnas Cultural (Rua Real Grandeza, 219 – Botafogo – RJ).
Abertura: dia 25 de outubro, das 19h às 22h.
Visitação: de 26 de outubro até 30 de dezembro; de terça à sexta das 14h às 18h; sábados, domingos e feriados, das 14h às 19h.
Entrada franca

domingo, 21 de outubro de 2018

“SUPERANDO” O TERRORISMO

Roberto Rillo Bíscaro

Difícil contestar que visões mais extremadas de direita tenham ganhado destaque. Os virulentos ataques ao feminismo e a imigrantes, presentes nos manifestos do terrorista Anders Behring Breivik, por exemplo, hoje são usados em campanhas eleitorais e por “gente de bem” ao redor do globo, sem grandes problemas ou pudores.
Em 22 de julho, de 2011, Breivik chacinou dezenas de pessoas – em sua maioria jovens – na capital norueguesa e numa ilhota adjacente. Já estive em Oslo nesse mês e a sensação de paz, segurança, limpeza é tão grande, que nem sei se dá pra dimensionar o choque surpreso da população com edifício governamental voando pelos ares e molecada metralhada em acampamento de verão. Sem exagero, no primeiro sábado após a volta da viagem escandinava, comentei com amigos quão proporcionalmente mais barulhento é o centro de minha média cidade brasileira, com seus carros de som e lojas berrando seus produtos e música de que não gosto, comparando com a tranquilidade norueguesa.
A Netflix adicionou ao catálogo o longa 22 de Julho, roteirizado e dirigido pelo experiente e humano Paul Greengrass. Nas mãos do britânico, o pesado, comovente e enfurecedor material não vira tablodice sensacionalista. Antes, sua cinematografia algo sombria, adquire ares quase de docudrama.
22 de Julho foi baseado em um livro e paraleliza o julgamento de Breivik à história de recuperação do adolescente Viljar Hanssen, que além da cegueira de um olho e entraves motores terá que conviver com fragmentos de bala no cérebro, que, ao menor deslocamento, podem matá-lo.
O filme não escapa de representar o massacre e o faz logo no primeiro ato. Um dos muitos cuidados respeitosos de Greengrass pode ser observado nessa longa sequência. Lógico que há que registrar o desespero dos adolescentes tentando salvar suas vidas, mas sendo eliminados como moscas pelas rajadas. Mas, 22 de Julho não mostra close ups dramáticos ou montanhas de corpos ensanguentados. É tudo meio de longe, exceto no caso de Hanssen, porque, temos que nos identificar com ele. Digamos que não seja algo muito difícil, a não ser que o espectador seja algum extremista desequilibrado como Breivik.
Mas, para o espectador que se considera mais liberal, cabeça aberta, multiculturalista, legalista, ou qualquer que seja o termo exato, fica uma grande arapuca nos segundo e terceiro atos. Como acompanhamos a dor física e psicológica do lindo Viljar – como não se compadecer com o sofrimento de uma quase criança? – em contraposição aos desconexos discursos do assassino, pode ficar difícil não incorrer no “bandido bom é bandido morto”.
E esse é outro mérito do filme e da Noruega: ambos deram voz a Breivik e garantiram-lhe tratamento e julgamento justos. A ideia de 22 de Julho é de esperança, é de não se tornar como o agressor.
22 de Julho não é perfeito e as mulheres têm do que reclamar, porque a polpuda parte misógina dos manifestos de Breivik foi suprimida. Além disso, embora o forte tom xenófobo não seja ignorado pelo roteiro, a única personagem que poderia dar voz à mulher norueguesa não-caucasiana é secundária aos machos adultos brancos machucados em mais de um sentido, que compõem o centro da narrativa.
Em uma produção falada em inglês, interpretada por elenco norueguês, nem todos os atores estão confortáveis o bastante para interpretar convincentemente. Isso não estraga a obra, mas para entendedores de inglês, às vezes, o sotaque é carregado demais e fica meio artificial. Isso é preço bem pequenino a se pagar por ter um produto mais acessível ao mercado internacional e atuado por gente que tem mais conexão com o representado.
Destaque tem que ser dado ao jovem Jonas Strand Gravli, que interpreta Viljar Hanssen. Mesmo atuando em idioma que não é o seu, o ator consegue transmitir todo o tormento emocional e físico que a personagem experiencia por tantos motivos, após o ataque e durante sua longa e dolorosa recuperação. E é em Viljar que Greengrass representa a questão da possibilidade de “superar” trauma tão devastador. Provavelmente, como no caso da guerra (First They Killed My Father, na Netflix, é ótimo exemplo), não dê para falar em superação, mas em convivência com os fantasmas e transformação da dor em militância para um planeta melhor.

sábado, 20 de outubro de 2018

MISS ALBINA

 Andreia Muhita, 22 anos de idade, representante da província do Cuando Cubango, foi eleita Miss Angola Supranational 2018. Ela declarou que durante  seu mandato vai trabalhar numa campanha contra a discriminação que os albinos sofrem nas comunidades onde estão inseridos.

Leia uma entrevista da Miss albina, para o Jornal de Angola:

“Na escola chamavam-me fantasma”

Edna Dala


19 de Outubro, 2018


No dia em que foi eleita, declarou que vai trabalhar numa campanha contra a discriminação dos albinos. Como pensa desenvolver esse desejo?
Penso desenvolver esta campanha de maneira positiva e pretendo realizar palestras, para as quais gostaria imenso de ter o apoio da Associação dos Amigos Albinos de Angola e de pessoas que tenham conhecimento sobre o assunto. Se possível for, gostaria também de escrever e fazer vídeos para as redes sociais. Penso, igualmente, fazer projectos direccionados à criança, de forma a que elas possam aprender, desde cedo, sobre o albinismo e saibam que é algo normal e que não há nada de errado com o tom da pele da pessoa. Relativamente ao lema da campanha, confesso que ainda estou a maturar a ideia. Tão logo tenha, vou divulgá-lo.

Como encara a política de inclusão do Estado de pessoas que são discriminadas na sociedade, como as pessoas com deficiência, os albinos e outras?
As políticas estão ali, mas precisam de ser reforçadas e aplicadas, pois nas políticas do Estado não há discriminação. A discriminação é um crime e é necessário que as pessoas saibam que a discriminação não é apenas com os albinos, mas também com outras pessoas portadoras de alguma deficiência.

Conhece bem a realidade dos albinos em Angola?
Sim, conheço. Mas tenho um conhecimento básico. Sei, por exemplo, que uma das dificuldades dos albinos prende-se com a falta do protector solar, uma necessidade básica para quem tem a pele muito sensível. Infelizmente, este protector é extremamente caro no mercado angolano. Além disso, normalmente, precisamos de ajuda para adquirir os cremes. Outra realidade dura que enfrentamos é a discriminação de amigos, colegas de escola e de trabalho e até mesmo dos empregadores. Há pessoas que não percebem muito bem essa questão do albinismo e os mitos tomam conta destas pessoas. Elas acreditam que, se empregarem alguém com albinismo, podem ter má sorte e uns crêem que um encontro entre albino e gémeos resultaria em conflito. São mitos que estão à nossa volta e não permitem uma convivência normal na nossa sociedade.

Tendo em conta essas necessidades, que tipo de apoio gostaria de receber do Estado?
Gostaríamos de ter um centro onde pessoas com albinismo e sensíveis, desde que estejam registadas ou cadastradas, tivessem acesso grátis a esses produtos ou a um preço reduzido, porque é uma questão de saúde dos albinos. Não é justo que alguém que precise de protector solar, como necessidade básica, tenha de pagar um preço exorbitante.

Angola é, felizmente, um dos poucos países da Comunidade de Desenvolvimento das África Austral (SADC) onde o nível de discriminação é baixo, em comparação com outros países. Mesmo assim, acha que não é fácil um albino ter uma vida normal em Angola?
Todos nós temos dificuldades e obstáculos e o albino, dependendo da sociedade em que está inserido, pode ter uma ou outra dificuldade. Felizmente, tive a sorte de não ter muitas dificuldades na infância, tendo em conta que não cresci em Angola. Ainda assim, enfrentei "bullying" na escola onde algumas crianças chamavam-me "fantasma". Eram crianças angolanas que apresentavam esse tipo de comportamento.

Como encarava esse tipo de atitude? 

Acreditava que, se num país estrangeiro, os angolanos faziam aquilo comigo, em Angola devia ser pior. Infelizmente, as pessoas com albinismo recebem nomes e algumas têm muitas dificuldades. Esse tipo de comportamento baixa a auto-estima e acaba por fazer com que a pessoa lesada se sinta inferiorizada. Devemos aprender a contribuir para a elevação da auto-estima das pessoas, para que se sintam amadas e inseridas na sociedade, dando-lhes a oportunidade de mostrar o seu real potencial. Acredito que Angola tem potencialidades para dar uma vida melhor para os portadores de albinismo.

Como conseguiu combater o estigma e a discriminação e encarar com naturalidade o facto de ser albina?
Vivo sob o conceito de que nada que alguém disser sobre mim vai influenciar a minha vida, a não ser que sejam críticas construtivas. Quanto mais as pessoas nos prestarem apoio e carinho, mais nos sentimos capazes de ultrapassar qualquer obstáculo.

O preconceito, às vezes, começa em casa, onde o albino é rotulado de várias formas. A sua família ajudou, de alguma maneira, a combater o preconceito que ainda existe na nossa sociedade?
Tenho e sempre tive o amor da minha família, o que me dá muitas forças para perseguir com quaisquer desafios. O facto de saber que eles me apoiam e estão sempre comigo é suficiente.

Já passou por um momento de grande constrangimento na vida, devido à sua pele? 
Sim, já passei por situações de constrangimento, por conta do meu tom de pele. Recordo-me que, quando mais pequena, aos nove anos, e frequentava o ensino primário, tive uma professora que me dizia que eu não podia frequentar uma escola normal. Chegava ao ponto de me pressionar, alegando que eu não estava em condições de frequentar o ensino normal. Além deste episódio, nunca tive constrangimentos que me afectassem de forma a me derrubar. Consigo enfrentar qualquer coisa, principalmente, em pleno século XXI, onde não deveria existir discriminação contra ninguém, quer seja pela cor da pele, quer pelo género ou orientação sexual. Acredito que Angola está pronta para dar este grande passo. 

Na sua luta contra a discriminação, que resultados espera alcançar? 
Gostava de ver mais pessoas com albinismo destacadas na sociedade, desde grandes médicos, professores e cantores, pois uma figura representativa nos fortalece e nos permite ter a capacidade de enfrentar os nossos medos e mostrar o nosso real potencial.

Qual é o seu maior sonho?
O meu maior sonho é ser uma modelo internacionalmente reconhecida, fazer publicidades e desfilar para grandes nomes do mundo da moda. Também gostava de ser uma actriz. Considero-me uma pessoa amante dos artes e palcos. Enquanto estive no ensino médio, sempre participei das peças teatrais. Gostava imenso de estar no palco e influenciar pessoas contando histórias.

Tem recebido apoios do Estado?
Sim, por enquanto, tenho recebido apoio moral, que seja de forma directa, quer indirecta, em particular do Governo Provincial do Cuando Cubango, dos colegas da universidade e de pessoas singulares. Gostava de ter o apoio financeiro do Estado, porque os projectos acarretam custos, particularmente, a participação no concurso Miss-Supranacional. Tenho ainda muita coisa por aprender e o apoio financeiro do Estados e outras entidades particulares ajudar-me-iam muito.

quinta-feira, 18 de outubro de 2018

TELONA QUENTE 258


Roberto Rillo Bíscaro

Desde pelo menos Carrie, a Estranha (1976), que menininhas abusadas exercem terríveis vinganças, usando seus até então desconhecidos e indomados poderes de telecinesia. Variação importante são os humilhados que descontam seus revezes, incendiando tudo com sua pirocinese, como em Chamas da Vingança (1984).
Em 2013, a diretora/roteirista Marina de Van adicionou importante entrada a essa lista, com Dark Touch (O Lado Sombrio, por aqui, parece). A coprodução Irlanda/França/Suécia centra-se na perturbada garota Niamh (a ótima Missy Keating), cuja família é brutalmente assassinada no interior da Irlanda. Sem pista ou rastro que ajude a polícia a desvendar o mistério, o crime permanece sem solução e a garota passa a viver com um casal e seus dois filhos.
Traumatizada, Niamh é compreensivelmente distante e assustadiça, dada a períodos de torpor, expressos à perfeição pelos olhares mortiços da atriz. Como nos terrores mais eficazes, a força de Dark Touch reside no fato de que o sobrenatural e o gore são modos de ficcionalizar o que lemos nos jornais diariamente: gente que extravasa seu ódio/pavor/trauma/recalque acabando com a munição de metralhadoras em quem não teve nada a ver com a situação.  
Porque Niamh foi extremamente machucada física e psicologicamente pela família, é uma dessas pessoas com a metralhadora, em seu caso, traduzida em poderes psíquicos.
Ainda que meio tresloucado, o desfecho não é edificante, redentor bonito ou agradável.
Dark Touch não virará clássico, mas perturba, porque reconhecemos na garota vingadora, o arquétipo pra nossos próprios medos. Não é pra quem curte horror modinha ou divertidinho, onde no fim tudo dá certinho ou fica espacinho aberto pra conitinuaçãozinha.

quarta-feira, 17 de outubro de 2018

CONTANDO A VIDA 253

QUEM GANHA, PERDE: a sagrada lição do tempo. 

José Carlos Sebe Bom Meihy 

Foi por mero acaso. Havia comprado o livro “quem perde ganha”, de autoria de Ana Maria Machado, para dar a uma neta que tinha então oito anos. Por algum motivo, o presente ficou guardado, e em recente arrumação de minha estante pessoal encontrei o mimo. Cansado com a movimentação de quem tira e põe livros arranjados em nova ordem temática, parei e li o precioso texto como se voltasse à infância. Foi um bom delírio. Viagem em tempos distintos: infância e maturidade. Flanei... Esse texto trata de uma questão filosófica profunda, vertida para o alcance infantil. Como manda o figurino, Ana Maria Machado cuidou do assunto de maneira pedagógica, leve e com humor delicado, quase poético. São três histórias combinadas: "Fiapo de trapo", "A menina que vivia perdendo" e "O boto e a estrela". Sob juízo crítico e literário, trata-se de um magnifico jogo de linguagem que coloca em dúvida o dilema da perda. Mais do que propor nexos que se esgotam em vitórias, os três casos projetam continuidades transformadoras. Tudo, porém, visto pelo ângulo saudável de quem perde. Opondo os vencedores aos menos afortunados, a autora sugere meditação sobre a falibilidade dos fatos e deixa entrever o efeito do tempo que, afinal, mostra que nem sempre a vitória determina permanências benéficas. Há algo de Lavoisier na proposta que consagra a máxima: tudo se transforma. 

Por lógico, o texto se vale de exemplificações. São historietas que ilustram o sentido moral e, nesta linha, a segunda narrativa, sobre a menina Lena, é destacável. O relato remete a uma situação de crescimento biológico. Em plena fase de transformação do próprio corpo, a criança que caminha para a adolescência vai perdendo roupas e sapatos. Tudo se passa sob o zelo da mãe, que contempla a ambiguidade da menina que, no compasso do crescimento inerente a vida, se vê forçada a perder. A lógica filosófica proposta pela autora me levou a recorrer a outro texto escrito por Grahan Greene, inglês católico e notável escritor polêmico (ele bradou contra a “menininha” Shirley Temple, personagem dos sonhos dos norte-americanos no cinema, durante a Segunda Guerra Mundial). Greene em “Quem perde ganha” se vale da mesma estratégia narrativa e também coloca o momento da vitória em questão dramática. Mais do que ganhar uma contenda qualquer, interessa ver o rearranjo da situação no futuro. Como quem dissesse, olha, a vitória não significa fim, ambos os textos nos animam pensar o futuro. 

Filtrei, pessoalmente, ambos textos e fiz uma aproximação com o momento político que vivemos. Foi assim que resolvi dar um balanço nas ladainhas de perdas de minha vida. Tirando a ausência de entes amados, que por razões emocionais não constelam meu juízo racional, percebi que as histórias de derrotas não foram cabais. Sempre, sempre, tudo resultou em algo bom. Foi com esta bússola que decompus momentos áridos de meu convívio com adversidades. Decantados tais enredos, aprendi que passado o choque do veredito, um abatimento me aproximava da raiva. Também me foi válido lembrar que ter uma dose pequena de raiva é condição ponte, passagem para outra fase. Nunca fui de me conformar com os dados apresentados por situações de perda. É verdade, pois, que algumas vezes, depois da raiva – e por causa dela – me vi nas cercanias da depressão, mas também não sou chegado a baixo astral. Superada esta segunda fase, um alerta de reconstrução se me apossa, e neste momento vivo a sabedoria imposta pelo verbo “aceitar”. E tudo se ilumina. É mais ou menos assim que me sinto agora. Vejo, em termos sociais e coletivos, um momento em que meu ardor democrático será arranhado. Preparo-me para perder. Dói-me muito achar que estou como aquela mãe que, ante um desfile militar, via apenas o filho com o passo certo, os demais todos marchando em outro ritmo. 

A oportunidade dos dois textos com o mesmo nome “Quem perde ganha”, um escrito para crianças e outro para público adulto, me alenta de maneira jeitosa. Preparo-me para enfrentar a tempestade que se anuncia devastadora. Mas, muito mais do que isso, estou aberto a entender o que a história tem a dizer para meu empenho cidadão, e o que me significa perder o compasso do coletivo. Ganhei antes (me é bom não esquecer), e agora se perder, além de reconhecer as virtudes do passado recente, tenho que me preparar para renascer. Tomara que as sagradas lições eivadas de leituras tão prazerosas resultem válidas. Estou pronto para ser derrotado agora. Estou pronto, também, para ganhar no futuro. É a vida, dirão os mais sábios. É a vida, digo para mim mesmo.    




terça-feira, 16 de outubro de 2018

TELINHA QUENTE 331

Roberto Rillo Bíscaro

A venerável BBC tem canal direcionado aos miúdos, a CBBC, sendo que o C é de Children’s. É dele, em associação com o canadense Family Channel, que saíram os 13 episódios de Diário de Horrores, recentemente incorporados à Netflix. 
Originalmente batizada de Creeped Out, Horrores não deixa de ser exagero, porque as histórias estão mais pra fantasia, sobrenatural, aventura e ficção-científica. É muito mais Histórias Extraordinárias do que Contos da Cripta. Um Black Mirror Kids, ou A Quinta Dimensão mirim.
Adultos devem estar se perguntando se vale a pena investir tempo. Sim, é muito divertida e deliciosamente genérica. Se seu repertório é amplo e sua idade não muito tenra, vai te lembrar desde Stranger Things até Janela Indiscreta.
Cada fábula moral é precedida e sucedida por narradora que tece considerações “filosóficas” a respeito. A desculpa pra voz em off é que um mascarado chamado O Curioso está sempre nas cercanias de cada história e dela pega algum souvenir ao fim do episódio. Tem musiquinha misteriosa e a maioria dos protagonistas é infanto-juvenil pro público-alvo se identificar. Até o Curioso é jovem e antes de assustador, é enigmático.
Diário de Horrores é pra dar medinho gostoso, como aquelas histórias de acampamento à beira da fogueira. Menina que tem vergonha dos pais; menino que acha que trapacear não tem problema, desde que não machuque ninguém. 

Um podcast é como um programa de rádio, porém sua diferença e vantagem primordial é que o conteúdo está a sua disposição para ouvir na hora em que bem entender. Basta acessar e clicar no play ou baixar o episódio. Assim como a TV, o rádio e o jornal, o podcast é uma mídia de transmissão de informações, porém como sua origem é muito recente, ainda está em seu processo de crescimento, principalmente no Brasil, onde atinge poucas pessoas.
Para fãs do sobrenatural, ocultismo, horror, folclore urbano, o mais aclamado podcast à disposição é o premiado Lore, criado por Aaron Mahnke, em 2015 e que já tem dezenas de episódios. O norte-americano conta histórias bem estranhas do passado e, quando possível, liga-as com crenças até hoje conhecidas, aceitas ou compartilhadas.
Se você entende inglês e curte ouvir histórias de arrepiar – Mahnke precisa fazer podcast explicativa sobre a tradição que segue nessas transmissões, a das histórias de horror ao redor da fogueira – eis o endereço de acesso:
Ano passado, Aaron transportou algumas histórias pras telinhas e a Amazon ajudou a produzir e distribui os seis episódios de Lore, em sua plataforma de streaming, desde outubro de 2017. Uma segunda temporada logo estará a disposição.
O show tenta ser mais dinâmico do que na realidade é. Há animações, gráficos, fotos, imagens de arquivo, narração, efeitos sonoros e encenação. Soa como pós-moderna experiência multissensorial inovadora, mas é apenas um filme pra TV interrompido muito frequentemente, às vezes com histórias que se querem complementares, mas não são, como no episódio sobre os espíritos-impostores irlandeses (que sotaque podre é aquele !?), onde a história duma atiradora norte-americana para tudo e a gente não percebe bem porquê, uma vez que não há changelings envolvidos. Não que tenha sido desinteressante aprender sobre Annie Oakley – a primeira grande celebridade ianque vivia de armas, isso não é sintomático? – mas não tem nada a ver com a história da esposa torrada pelo marido que a achava uma sósia.
O pecadilho de Lore é que a parte dramática geralmente é meio insossa; seria bem mais legal se fosse documentário de vez; bem dinâmico, que problema teria? O pecadinho do telespectador é acreditar em tudo acriticamente, como se fosse tudo de verdade. Há tendência de ver o passado como intrinsecamente atrasado e as crenças e práticas descritas, como generalizadas. Não é tão simples assim e as relações de causa e consequência podem não ser as que Aaron quer.
Tendo esse cuidado, Lore é bem curtível e fãs do desconfortável adorarão as bizarrices relatadas, como o pânico de ser enterrado vivo levando a velórios longos até o início da putrefação, pra se ter certeza da morte; o mexicano que pendurou centenas de bonecas em cordas numa ilha pra apaziguar um espírito e a lenda do lobisomem (Mahnke apresenta uma versão, mas há diversas). Pra quem quer inúteis efemérides úteis pra rodas de papo com amigos, Lore traz um monte de suculências. Verei a próxima temporada de boa. Podcast não tenho saco, me dá sono.
Nota desanimadora e pra pensar: a história mais agoniante e perturbadora não é lenda urbana; é a do Dr. Walter Freeman, desenvolvedor da lobotomia, que consistia em enfiar um espeto de aço pelo nariz do paciente (vítima ficaria melhor) acordado, mas chocado (no sentido de ter levado choque) e lhe danificar ligações no cérebro. Então, e a ciência sempre tem razão, certo?