terça-feira, 2 de outubro de 2018

TELINHA QUENTE 329

Roberto Rillo Bíscaro

Quando fui ao Cine São Joaquim ver O Fugitivo, a série em que fora baseado já era de outra era. Era 1993, e as 4 temporadas de The Fugitive tinham sido exibidas entre setembro de 1963 e agosto de 1967, o que significa que o último dos 120 capítulos foi ao ar, quando eu tinha 7 meses.
Quando resolvi ver a íntegra da série da ABC, o filme estrelado por Harrison Ford e Tommy Lee Jones é que já era de outra era pra juventude de hoje. Como voa esse maldito tempo!
Clássico gerador de imitações ao longo das décadas, The Fugitive é sobre o Dr. Richard Kimble, médico de Chicago, que após discutir com a esposa, sai pra espairecer, mas quando retorna encontra-a morta e é culpabilizado. Julgado e condenado à morte, consegue escapar enquanto é conduzido à penitenciária pelo Tenente Philip Gerard. Kimble vira um homem de braço só fugindo da cena do crime, mas não fora levado a sério. Durante a série, o médico percorre todo o território norte-americano, fugindo de Gerard e perseguindo o Homem de Braço Só.

Desconheço se apenas provas circunstanciais são suficientes pra conduzir alguém ao corredor da morte, mas mesmo que não sejam, O Fugitivo continuará merecendo seu estatuto de clássico. Remetendo ao mito hercúleo do atormentado benévolo que ziguezagueia sem guarida por sua própria terra, Richard Kimble parece imã pra atrair problemas, mas por onde quer que passe, transforma vidas com sua decência, integridade e bondade às vezes levadas às raias da teimosia masoquista. Esse tipo de situação e personagem renderiam séries como Os Invasores, O Incrível Hulk e tantas outras.
Claro que há marmeladas: no mundo superperigoso e vigiado de Richard Kimble, ele aparece a cada episódio sob nome diferente. Até aí nada de errado, mas acompanhando o nome, documentos falsos. Que fácil consegui-los num show, não?
Mas, é difícil não empatizar e genuinamente torcer pelo médico, não apenas porque sabemos que é inocente, mas porque sua nêmesis é obstinadamente antipática. O Tenente Gerard parece usar viseira de cavalo, porque só enxerga pra frente, e olha que ao longo das 4 temporadas Kimble salva seu filho, esposa e o próprio policial mais de uma vez. O britânico Barry Morse está esplêndido com seu sotaque estadunidense e fala sempre afável. Como é inflexível e arrogante, sempre amamos os olés que toma de Kimble, que sempre escapa por um triz.

Os roteiros são tão bem urdidos – era gente que cresceu com clássicos tipo Salário do Medo e Hitchcock – que mesmo sabendo que o Dr. Kimble se safaria, é difícil não ficar tenso, com as procrastinações e azares que podem significar sua captura. Quando David Janssen dá aquelas paradinhas pra olhar a câmera ao invés de fugir logo, dá vontade de gritar pra parar de enrolar e vazar.
Roteiros competentes que se seguram até hoje; antagonista odiável; um inocente injustamente acusado. Tudo contribui pra que essa produção de Quinn Martin (o mesmo de São Francisco Urgente) se sobressaia no mar de mediocridade que era a TV da época. Que o protagonista injustiçado tenha sido regiamente interpretado por David Janssen só ajudou.
Dá pra crer, porque tantas pessoas ao longo de sua peregrinação acreditam em sua inocência só de ouvi-lo dizer. Sua personagem é bondosa, mas sua discreta presença, cheia de silêncios, meneares de cabeça e sua voz baixa e rouca tornam-no gostável em poucos segundos. OK que seus ocasionais grunhidos ininteligíveis às vezes exasperam, mas lembremos que então, a maioria dos atores queria ser macho como Marlon Brando (que também adorava um bom macho). Como diz Barry Morse numa das minientrevistas da caixa de DVDS com a série completa, não faltava gente pra esconder Kimble debaixo da cama. Mas não necessariamente embaixo...
Com trilha sonora marcante e três das temporadas ainda em branco e preto, O Fugitivo continua um prazer viciante de se ver e mesmo pra nós mais velhos, já acostumados à contemporaneidade, parece estarmos presenciando algo duma dimensão paralela.
Não apenas porque não vemos celulares – mas em um episódio já se ensaia usar um computador pra rastrear o Fugitivo! Tosqueira hard pra era dos notebooks! – mas, porque há atitudes hoje alienígenas, como fumar como doidos em qualquer lugar, inclusive hospitais. Homaiada de terno e chapéu na rua; xerife dando canivete de presente prum guri de 8, 9 anos e aluninhos saindo pruma excursão balançando-se na perigosa caçamba duma caminhonete. Imagine isso numa série de hoje o estouro de reclamações que não causaria. Curioso que se aparecem vísceras num episódio de TV aberta, passa batido. Será que sangue e autópsia é o novo cigarro?
Mesmo que algo moroso pros padrões atuais de velocidade supersônica de diálogo e trama – falas em um capítulo de Scandal dão dois d’O Fugitivo! – apreciadores de boas histórias adorarão a série, que também inovou ao propiciar um desfecho pra correria de gato e rato. Isso não era comum na época; não havia preocupação com o que hoje denomina-se closure ou simplesmente respeito pra com o telespectador que investiu tempo e emoção nas personagens.
No capítulo final, Dr. Kimble consegue provar sua inocência (não vá me dizer que você esperava diferente?), não sem pequena reviravolta por parte de Gerard.
Nem quero imaginar o estresse pós-traumático que o cara enfrentaria na vida real depois de anos sendo perseguido, esmurrado, humilhado, baleado, porque o Dr. Kimble come o pão que o diabo amassou.
Por tantos motivos, é inesquecível. 

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