terça-feira, 3 de agosto de 2010

TESTEMUNHANDO A AIDS

Filme de época é um termo que designa produções ambientadas em épocas passadas. Uma historia que se desenrola no século XIX é de época simplesmente porque “retrata” o período, com suas roupas, mobiliário e costumes Se bem analisada a designação é vazia de sentido: afinal, qual filme não é “de época”? Filmes produzidos hoje, são de nossa época. Ou não?

De qualquer modo, domingo assisti a um filme de época, Les Témoins (2007), dirigido pelo francês André Téchiné. Curioso constatar que uma história passada nos anos 80 seja considerada “de época”. Foi o período de minha adolescência, então devo crer que sou uma pessoa “de época”!

Manu, jovem da província, muda-se pra Paris e conhece Adrien, médico de meia-idade, que se apaixona pelo rapaz. Embora rechaçado sexualmente, Adrien, algo masoquistamente, concorda com um relacionamento platônico com Manu.

Paralelamente, desenvolve-se a história de um casal heterossexual (mas, não muito...). Sarah é filha de família de posses, escritora de livros infantis que detesta crianças, incluindo o próprio filho. Isso causa tensão com seu marido, o policial Mehdi, de ascendência moura e classe social inferior. Ambos têm um relacionamento aberto, mas não isento de neuras.

A ligação entre os 2 núcleos se dá porque Adrien é amigo do casal Sarah/Mehdi. Num fim de semana, o médico leva seu jovem protegido pra casa de praia da família de Sarah, onde Manu conhece Mehdi.

Mehdi é membro dum esquadrão da polícia que combate prostituição, inclusive realizando batidas no hotel-prostíbulo onde Manu vive com sua irmã, aspirante a uma carreira operística. Obrigatoriamente conservador quando em serviço, o marido de Sarah mostra-se bem mais liberal e liberado quando começa a ter um caso com Manu, sem que ninguém mais saiba.

Todos os arranjos secretos do grupo vêm à tona e necessitam ser explicitados quando Manu apresenta os sintomas da AIDS. O filme se passa em 1983/4, quando não se sabia quase nada sobre a síndrome, que era então sentença de morte. A França é lócus perfeito pra trama, visto que o país, juntamente com os EUA, esteve na vanguarda das pesquisas sobre a síndrome.

A notícia da doença de Manu causará conseqüências em todas as demais personagens. Mehdi tem que assumir sua bissexualidade perante a esposa, Adrien se torna um paladino na luta contra a epidemia que se agiganta a cada dia, Sarah encontra nova inspiração pra escrever (o filme é narrado pela personagem).

Téchiné evita passar julgamentos morais sobre suas personagens, ambíguas e fluidas, que assumem distintas identidades conforme as diversas situações e ambientes em que se encontram. Apesar do tema propício a um dramalhão lacrimoso, Les Témoins não se compraz na morbidez, graças a seus diálogos e cenas ágeis. O ritmo da película é bem menos pesado do que o de um drama. Na verdade, é fluido como a água e os vôos matinais de avião, figuras recorrentes na narrativa. Fluido também como a sexualidade e comportamentos das personagens.

As personagens de Les Témoins são testemunhas de um evento avassaladoramente triste, que terminou por influenciar em algumas mudanças com relação à sexualidade e até ao modo como alguns grupos passaram a ser tratados. A questão do testemunho é vital no filme, posto que Manu decide registrar sua vida em fita cassete como testemunho do que viveu. O pessoal que lida com medicina narrativa deveria ver o filme. Mas não só eles.

Dividido em 3 partes, Les Témoins termina com a certeza de que a vida segue seu curso, sem lições de moral, mas com o reconhecimento de que a experiência dos que se foram alimenta e informa a existência dos que ficaram.

Eis o trailer:

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