quarta-feira, 25 de agosto de 2010

CONTANDO A VIDA 2

Na crônica de hoje, o professor José Carlos Sebe fala sobre três canções de resistência à ditadura militar, dentre elas, um samba- enredo, de 1969. Muito educativo para os (poucos, espero) que batem na surrada e preconceituosa tecla de que carnaval é alienação.


HINOS DE LIBERDADE: a música da resistência à ditadura militar.
José Carlos Sebe Bom Meihy

Entre tantas, pelo menos três canções se prestam a representar a resistência aos terríveis anos de chumbo vividos por nós entre 1964 e 1983. A mais conhecida dessas músicas, de autoria de Geraldo Vandré, foi também a mais explícita de todas. Os empolgados versos, que encantaram a juventude de então, faziam multidões marcharem com palavras de ordem do tipo: “vem/ Vamos embora/ Que esperar não é saber/ Quem sabe faz a hora/ Não espera acontecer” e progredia com “somos todos soldados/ armados ou não”. Certamente, não cabem reparos nessa letra prá lá de inspirada e prenhe de significados militantes.

Aldir Blanc e João Bosco compuseram mais tarde outra canção de enorme sucesso, em particular na gravação antológica de Elis Regina. Trata-se de “O bêbado e o equilibrista”, onde era reclamada a sorte de “tanta gente que partiu” e que finalizava dizendo, depois da “volta do irmão do Henfil”, que o “show tem que continuar”. A sutileza dos versos empata com a delicadeza da mensagem otimista. Já se disse que a presença de Elis é tão perfeita que ofuscou o significado da letra. Tenho dúvidas, porém.

Ainda que essas duas primeiras sejam mais conhecidas, há outra que expressa sobremaneira os anseios de liberdade do conjunto de brasileiros que suportaram a ditadura por longas décadas de obscurantismo. Mais uma vez, vale recordar que foram tempos onde a censura grassava, o endividamento externo crescia, a corrupção era escondida, e as contas mentirosas propalavam um Brasil que apenas existiu na cabeça de conservadores sisudos e avessos ao viver democrata, livre e aberto. Pensar nessas coisas, aliás, convoca a tristeza de quantos não conseguem ver virtudes na liberdade e mitificam um tempo que não existiu além da repressão e que, sem imaginação, sentem saudade do que não foi mais do que ato demolidor da vocação libertária.

Sábia, porém, a inteligência de quantos vislumbram as delícias de poder viver sem os tormentos de limites de expressão, se fazia presente de maneira sutil. Tecnicamente, poder-se-ia dizer que se trata de metalinguagem, mas isso demandaria arrastar a discussão para uma esfera diversa. Interessa registrar que houve um samba- enredo especialíssimo que, em 1969, foi tema da Império Serrano. O autor, Mano Décio da Viola, tecendo homenagem prá lá de cabível aos mestres dos mestres dos sambas-enredos, Silas de Oliveira e Manoel Ferreira, projetou a seguinte obra de arte feita em letras: “Já raiou a liberdade/ A liberdade já raiou/ Essa brisa que a justiça afaga/ Essa chama/ Que o ódio não apaga pelo universo/ É a evolução”. Logicamente, naquele então, a palavra “evolução” foi negociada, com muito empenho, com os “donos da tesoura” que cortaram o termo proposto “revolução”. Essa história ficou esquecida por anos. O fato de ser um samba de carnaval, por sua vez, ocultou na rotina cíclica das músicas sazonais o significado dessa beleza que se posta como um dos mais belos samba de todos os tempos. É preciso dizer que aos poucos, também nos vacilos da censura, outros intérpretes renderam homenagem ao autor e ao significado de suas palavras. Entre tantos, sem dúvida, a mais expressiva gravação é de João Bosco que, em outros tempos, recupera a palavra “revolução” e propõe a letra como foi concebida.


É importante articular reflexões sobre temas musicais. Tantas vezes, sem pensar, cantamos ao léu, sem perceber que podemos transitar tradições fundamentais para a cidadania.

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