sábado, 18 de dezembro de 2010

GUSTAVO LACERDA E SUAS LENTES DA INCLUSÃO

Nem bem havia criado o blog, o fotógrafo Gustavo Lacerda me escreveu dizendo que tencionava iniciar um projeto pessoal de fotografar pessoas albinas. Desde então, mantemos contato e tenho tido a oportunidade de ver o projeto florescer e dar suculentos frutos.
Este ano, o mineiro radicado em São Paulo, recebeu 2 importantes prêmios pela série de fotos, chamada “Albinos”. Um foi a incorporação de 3 fotos no acervo permanente da Coleção Pirelli/MASP. Mais recentemente, Lacerda ganhou o prêmio Porto Seguro.
Além disso, o trabalho tem resultado na inserção de alguns albinos no até então pigmentado mundo da moda e da publicidade.
O site Rede de Produtores Culturais da Fotografia no Brasil realizou entrevista com Gustavo, onde, entre outras coisas, ele comenta sobre a gênese, o desenvolvimento e futuros desdobramentos do projeto Albinos. Confira:

Entrevista
Gustavo Lacerda
Existem alguns fotógrafos e trabalhos que instigam tanto a ponto de atormentar, meio que como um calo dentro da gente. Eu sempre tive vontade de me sentar na frente dessas pessoas e fazer perguntas, ou só observar um pouco, pra tentar entender se elas eram mesmo a belezura que fotografavam. Confesso que por vezes meu desejo foi oprimido pelo pensamento quase idiota de que eram seres supremos e inatingíveis. Mas o calo permaneceu, duro e insistente. Pois heis que hoje tenho a faca e o queijo nas mãos (perigo!). Metaforicamente, me sento a frente de Gustavo Lacerda e derramo sobre ele minha curiosidade. Agradeço à sua gentileza de ter atendido meu "chororô" e a chance de ficar mais perto de imagens que me tiram do eixo.

Manu Melo Franco

O Gustavo Lacerda entendeu que era fotógrafo quando viu ou quando fez uma fotografia?

Bom, os primeiros contatos com a fotografia foram ainda bem criança, quando tinha o costume de folhear os álbuns de família. Em especial um, feito por fotógrafo, aqueles que antigamente iam fotografar nas casas das próprias famílias.
Como sou o caçula com uma diferença razoável de idade para os outros três irmãos, eu não estava presente nas fotos desse álbum e, talvez por isso, olhasse de forma diferente essas imagens, com um certo "olhar de estrangeiro".
Essas fotos certamente são as minhas primeiras referências de retrato. Mas daí para entender que eu era um fotógrafo, passaram-se muitos e muitos anos. Na adolescência, quando assisti o filme "Paris, Texas", comecei a perceber que imagem era uma coisa que mexia muito comigo. Mas a ficha só caiu mesmo lá pelos 20 anos de idade, quando entrei pela primeira vez num laboratório p&b e vi uma imagem emergir, literalmente, da banheira de plástico do revelador.

E, a partir dessa “descoberta”, o que aconteceu com ele?

Passei a respirar fotografia. Lia sempre a IrisFoto, a única revista brasileira sobre fotografia na época. Com a ajuda da minha mãe comprei minha primeira câmera, nessa época lembro que ainda pagávamos em dólar por uma câmera usada comprada no Brasil.
Comecei a trabalhar para ter um ampliador e em poucos meses o banheiro de casa virou um laboratório. Fiz vários estágios de fotografia, era assistente do centro audiovisual da universidade, fotógrafo do informativo da reitoria e monitor de fotografia no laboratório da escola. Depois fui assistente de um fotógrafo comercial e antes de me formar já era repórter fotográfico de um jornal em Belo Horizonte. Apesar da formação em jornalismo e de ser fã do "documental", aos poucos fui percebendo meu interesse e vocação para a fotografia "construída", com um processo maior de elaboração.
Quando me mudei para São Paulo já era fotógrafo, mas decidi voltar a ser assistente e trabalhei por alguns anos com grandes fotógrafos que me influenciaram de alguma forma.
Meu caminho, especificamente, foi meio longo e acho que isso ajudou a me dar uma base sólida, principalmente na fotografia comercial que depende muito também da técnica. Mas conheço pessoas que em pouco tempo já se destacavam profissionalmente. É interessante isso, cada um tem seu caminho, né? Cada pessoa é única, não ha fórmulas.

Pude ver que você já produziu muita coisa, tem material pra xuxu no seu site. Mas vou me prender aqui à duas histórias pelas quais me apaixonei enlouquecidamente (desculpem o egoísmo, caros leitores!). Começo por “Betânia”. Quem é ela?

Betânia é o sertão em mim. Uma espécie de "Rosebud" (com a devida licença poética a Orson Welles) do meu pai e minha ligação com ele fez de Betânia parte do meu passado também. Memória é uma coisa engraçada, né? Jamais vivi naquela cidadezinha perdida no sertão pernambucano mas já nasci com um bocado de Betânia nas células.

Esta viagem surgiu já como um projeto fotográfico ou como uma curiosidade pessoal que, pela importância familiar, tornou-se fotografável? Aliás, fotografar nosso “umbigo” é mais fácil ou desafiador quando sai do nosso álbum familiar e ganha a esfera pública?

Na minha infância Betânia era apenas uma placa de carro pendurada na parede do consultório do meu pai, aos pouco fui entendendo que era também o lugar das estórias de Lampião contadas pelo meu avô e, principalmente, dos silêncios do meu pai.
Conhecer Betânia e refazer, `as avessas, o caminho que meu avô e seus filhos fizeram na década de 30. Era uma curiosidade antiga, mas demorei um bocado para dizer "agora eu vou". Rodei quase 2000 km e fotografei bastante. É engraçado que embora Betânia seja um trabalho "documental" (e só mostre uma pessoa da família, um tio avô que descobri ainda vivo) há nas fotos muito mais da "minha Betânia" do que da Betânia real, quase perdida no miolo do mapa. Todas as pessoas presentes no ensaio são para mim bem mais os "meus fantasmas" de Betânia do que quem de fato elas são. Nesse sentido, minha fotografia é sempre meio "inventada". Inventada sempre em cima de quem sou, acho que não sei fazer fotografia sem deixar o umbigo um pouquinho a mostra, sinto que isso acontece até em alguns trabalhos comerciais.

Eu sempre fico pensando, quando vejo trabalhos como este, em como deve ser chegar, se aproximar, (re) conhecer, colher o que foi buscar e partir inteiro, sem deixar partes de si. Talvez porque eu nunca tenha conseguido isso... me conta como foi esse processo em “Betânia”?

Impossível não deixar um pedaço da gente e não levar muito do lugar conosco, né?
Cheguei a Betânia num mês de junho e, embora não soubesse, era dia de festividades religiosas. As pessoas do vilarejo estavam na praça comemorando. Em poucas horas, de forasteiro passei a ser "o primo do sudeste" de muitos dali.
Fui logo reconhecido simplesmente pelo meu jeito de andar, de parar com a mão no bolso... herança é uma coisa incontrolável né? rs
Fiz boas amizades, e vivi uma experiência única quando meu tio avô de noventa e poucos anos reconheceu a foto que eu levei comigo (a única imagem que existe da minha avó, um retrato de grupo, com todos os convidados do casamento dela em 1929) e passou a narrar como aquela foto foi tirada. Descobri inclusive que ele foi, na infância, ajudante do fotógrafo da região. Jamais imaginava que antes de mim a fotografia já havia entrado no sangue da família um dia.

Agora vamos deixar Betânia (e lá fica um pedaço meu que também é “retirante”!) e cair em “Albinos”. Como você chegou até eles?

Há muitos anos a beleza singular dos albinos desperta minha atenção. Acredito muito em sincronicidade. E não é que de uns dois anos pra cá, quando decidi começar a pesquisar sobre albinismo, eles começaram a cruzar meus caminhos com mais frequência.
Nunca encontrei tantos albinos como tenho visto ultimamente. Certamente sempre os vi, mas agora enxergo bem melhor, pelo jeito! No início do projeto tive mais dificuldades para convencer as pessoas a participarem, mas a partir das primeiras sessões de fotos a coisa foi engrenando, muito pelo "boca a boca", as pessoas que posavam para mim começavam a indicar amigos, parentes. E através de contatos que fui descobrindo em redes sociais a coisa foi crescendo.
É engraçado que no início eu simplesmente achava a pele deles linda e queria explorar essa beleza, mas a coisa tomou uma proporção bem maior do que eu mesmo imaginava, as pessoas retratadas sentem uma satisfação tão grande como "modelos" que isso foi me contagiando e dando cada vez mais força, leveza e espontaneidade ao trabalho.

A primeira vez em que vi estas fotos, logo pensei em uma Loretta Lux ao inverso. Não sei se o tom pastel das imagens me levou às dela. Ou se a coisa do bizarro, nela com exagerado equilíbrio estético e em você com crueza e sutileza ao mesmo tempo (ou eu bebi demais e estou delirando!). Enfim, de onde vem essa estética capaz de criar em nossas cabeças uma ideia tão peculiar dos albinos, meu Deus?

Conheci o trabalho da Loretta Lux alguns anos antes de começar a fotografar os albinos e, certamente, ela como também Diane Arbus, Sally Man, August Sander,o fotógrafo anônimo do primeiro álbum dos meus irmãos e tantos outros nomes tiveram bastante influência no meu trabalho.
Já há alguns anos venho experimentando me "libertar" um pouco do excesso de contraste nas imagens, coisa que a publicidade gosta(va). Os albinos têm tons de pele, lábios e pêlos mais suaves e são também pessoas suaves. Acho que por estarem "a margem" e saberem que a beleza deles não é obvia, eles têm uma postura mais delicada, sutil diante da câmera. Daí os tons pastéis. São estética, mas também atitude.
Desde o início do projeto sabia que eu queria trabalhar com fundos simples mas que remetessem ao portrait clássico dos estúdios antigos, sentia que isso traria um ar mais poético. Cheguei até a experimentar fundo branco e mesmo cinza, mas a crueza e força que isso dava às fotos saíam como um tiro pela culatra, pois eu não queria uma "força" que pudesse resvalar numa leitura de "denúncia". Inclusive, já havia um trabalho bem bonito e direto com albinos, nesse estilo. Definitivamente, o que me atraía eram a beleza, a leveza e principalmente a possibilidade de criar toda uma misencene (fundos cenográficos, figurinos bem estudados e até maquiagem). Eu queria instalar e assumir essa "aura" de estúdio com esses "modelos" que jamais haviam sido fotografados e logo comecei a notar que isso trazia um orgulho e despertava uma vaidade bacana nos retratados. Optei por assumir o risco de tê-los representando um papel de si mesmos que é também, assumidamente, meu. “Albinos” não é um trabalho documental.

Você também faz muito trabalho comercial está habituado a fotografar gente linda, magra e elegante! Como foi fazer este ensaio com pessoas fora desses padrões e ainda assim agregar tanta beleza e doçura ao que poderíamos chamar de "feio"?

Adoro fotografar quem nunca é fotografado. Quase não há poses estudadas, trejeitos e isso causa um "estranhamento" e uma timidez estimulantes. Gosto muito disso.

Pelo que vi, este trabalho criou pernas e anda sozinho por aí, inclusive foi Prêmio Porto Seguro este ano, certo? Por isso ele está completo ou ainda tem mais pela frente? Quando você sente que um trabalho chegou ao fim, você desiste dele ou ele de você?

É verdade, o trabalho acabou ganhando pernas rápido. No inicio tinha receio disso "esvaziar" o encantamento, a surpresa, mas acabou sendo bem importante para trazer muitos outros albinos para o projeto. Ainda vou fotografar algumas pessoas que são importantes para o conjunto do trabalho. Pretendo expor todas as fotos em 2011. Publicar um livro bem impresso, numa bela edição, também é um objetivo. Não estipulo um fim formal para o trabalho, até porque tenho vontade de continuar fotografando algumas pessoas ao longo dos anos, como os irmãos Italo e Renan. O casal Flávio e Fernanda, por exemplo, conheci quando ainda eram noivos, os fotografei na época do casamento e, quem sabe, um dia vá clicá-los com os filhos. Mas é natural surgirem outros projetos, minha cabeça não para de imaginar vários caminhos.

Aliás, essa coisa de prêmio já tem se tornado bem “rotineira” na sua vida, né? O engraçado é que ao mesmo tempo em que você é premiado com trabalhos publicitários, você o é com os seus projetos pessoais. Pra que lado essa corda vai romper? Ou é melhor não escolher e levar tudo junto ao mesmo tempo?

Sou super grato aos prêmios, surgiram em momentos importantes, acho até que acabaram funcionando como uma espécie de "auto-estima profissional". Renderam um dinheiro que foi bem vindo também, mas sempre procurei vê-los antes de tudo como um sinal de que meu caminho é honesto comigo mesmo e com meus anseios como fotógrafo. Claro, fico bem feliz quando ganho um prêmio, mas isso não é a alma da minha motivação.
Quanto à questão dos dois lados da corda que você citou (a publicidade e o autoral), ambos me despertam interesse. Embora a fotografia publicitária seja muito "engessada" e cada vez menos criativa, o desafio de produzir uma imagem que atenda o melhor possível a uma encomenda me estimula. A tensão, a pressão e o frio na barriga naturais num mercado tão disputado e com tantos profissionais competentes não me deixam acomodar. Na verdade, além de fazer por prazer fotografia publicitária, não posso ser ingênuo de não perceber que é ela quem ajuda a viabilizar meus projetos autorais.

E, pra terminar, uma imagem. Dê-nos uma foto que é “a cara” do Gustavo.

Poxa, gosto de tantas fotos...Vou citar esse retrato das 4 mulheres com máscaras e fantasias bem improvisadas, feito por Diane Arbus na época em que eu nasci, o inicio da década de 70. Gosto do mistério da imagem, é quase sinistra, mas também é romântica. Simples, direta, mas cheia de possibilidades.

(A entrevista veio recheada de fotos, que podem ser vistas no link http://www.rpcfb.com.br/posts/89 )

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