segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

CAIXA DE MÚSICA 14


ARES ELETRÔNICOS ARGENTINOS

Roberto Rillo Bíscaro

Surgido nos subúrbios de Buenos Aires no século XIX, o tango virou símbolo musical da Argentina, além de sinônimo de sensualidade, devido à dança e de dor de cotovelo e drama, por causa das letras. Carlos Gardel é mundialmente conhecido e nome de estação de metrô portenha. Astor Piazzola incorporou elementos de jazz ao ritmo e levou o tango ao Central Park novaiorquino e a incontáveis trilhas de filmes. Mesmo assim, os tangueiros mais tradicionalistas não consideram tango o trabalho de Piazzola.
Se Piazzola é esnobado por milongueiros puristas, que pensarão da geração que, a partir de fins dos anos 90, fundiu tango e eletrônica, criando o eletrotango, ou tecnotango, ou fusion tango? Uma espécie de encontro entre Gardel/Piazzola com Kraftwerk. Rechaçados por muitos argentinos, os eletrotangueiros, não obstante, fazem sucesso na cena lounge e eletrônica mundial. Catapultado pelo sucesso do álbum de estréia do Gotan Project - trio franco-argentino que vende muito bem e emplaca canções em trilhas sonoras de comerciais de TV, filmes e desfiles de moda – o subgênero alastrou-se também pelo Brasil. O Bajofondo teve música na abertura de novela global (A Favorita) e o Centro Cultural Banco do Brasil organizou o festival Ponte Aérea Portenha – Eletrotango, em 2009. Os grupos Tanghetto, Otros Aires, Narcotango e San Telmo Lounge apresentaram-se em Brasília, Rio e Sampa.
Implicância à parte, a vertente eletrônica do tango pode ser frequentemente escutada como música de fundo pra telejornais e comerciais de TV em seu país de origem.
Em maio, o hispano-argentino Otros Aires lançou seu terceiro álbum de estúdio, intitulado Tricota. Fundado em Barcelona, em 2003, o grupo é formado por Miguel Di Genova (voz, guitarra/violão e sequenciaodres), Emmanuel Mayol (bateria e percussão), Omar Massa (bandoneón) e Diego Ramos (piano). A formação em arquitetura, de Genova, explica a preocupação em inserir elementos visuais nos shows, cujos trechos são facilmente encontráveis no You Tube.
Desde o primeiro álbum o Otros Aires investe na utilização de samples de tangos e milongas clássicos, salpicando-os com beats e bytes eletrônicos. Di Genova, no entanto, afirma que o Otros Aires não é um grupo de electronica. Antes, são tangueiros utilizando elementos da tecnologia no ritmo, pra inová-lo.
A dosagem entre o tradicional e o moderno nunca esteve tão equilibrada como em Tricota. Uma das faixas chama-se Tangwerk, título que entrega de bandeja a influência dos alemães do Kraftwerk. A canção é sintomática, porém. O início é totalmente Kraft, mas depois, embora eletronizada, a canção é um tangão sem vocais, delicioso. É como se os alemães ficassem por detrás dos argentinos. O peso da tradição cristaliza-se na colaboração com a Orquesta Típica Erica Di Salvo y Los Reyes del Tango.
Tricota alarga o escopo de informações musicais mixadas pela banda. Os 40 segundos iniciais de Mariposita dão a impressão dum daqueles jazz tocados em festa de filme de Woody Allen. Super Nova York! Logo, porém, entra o tango em ritmo e espírito, com uma letra que fala em “calvário” e “dolor”. Mas, o pianinho meio jazz tá lá no fundo. Tristeza de Arrabal fecha o álbum com um contracanto flamenco de arrepiar. Como o flamenco é encharcado de influências mouriscas, dá pra ver a distância pronde o grupo navega.
Junto a La Aurora traz um ar melancólico e campezino - que não soa como tango - inédito na discografia do Otros Aires. Linda melodia e letra, que apresenta cenas de vidas urbanas “Reza la puta pa’ que sus hijas tengan uma vida mejor”. “Llueven bombas sin alma sobre las almas de outra ciudad”. Flashes de memórias, num clima meio folk anos 70. Ouço pelo menos 3 vezes por semana, desde junho!
O restante de Tricota divide-se entre os eletrotangos instrumentais, como “Essa” e os com letras, ora mais lentos, ora brejeiros, como o sacana Barrio de Amor, onde Di Genova, com sua voz apimentada, descreve vários tipos de amor, inclusive o tipo que “clava par de cuernos em torero” e o que “hará ruborizar el camiñonero”. Dá vontade de estar em Buenos Aires, deslizando pelo Abasto!
Tricota é tudo de bom. Os tradicionalistas têm todo o direito de não gostarem de eletrotango. Nós, filhos ou netos da Rainha Electronica, amamos! Em Varsóvia, Viena, Londres, São Paulo, Penápolis... Otros Aires está em Todos los Aires.

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