quarta-feira, 30 de março de 2011

CONTANDO A VIDA 28

José Carlos Sebe, nosso cronista agora em alto-mar, presta homenagem a um amigo de juventude recentemente falecido. O trançar dos fios da memória leva nosso professor a relembrar aventuras em Taubaté (SP) durante a ditadura militar enquanto enumera ocasiões boas vividas com o companheiro e com familiares.  


SUÍTE PARA VANILDO SABINO DINIZ
José Carlos Sebe Bom Meihy


Soube da morte de Vanildo num dia quente de verão. Antes, alguém anunciou que ele estava mal de saúde. Foi um tempo curto para alinhar experiências que compartimos nos idos dos anos de 1970, em plena vigência da ditadura militar. Não sei dizer como o conheci. Por certo, a admiração como pintor foi elemento de aproximação. Dono de irretocável capacidade artística, ele pouco se mostrava como tal, mas foi, sem dúvida alguma, o melhor primitivista da região. Inigualável.
Figura única, sensível ao extremo, politizado em suas decisões, tornou-se assistente social. Muito crítico, afinamos posições ideológicas e elaboramos um dos projetos mais relevantes de nossas vidas: cuidar, em nossos limites, da nova geração. Não se tratava de uma proposta qualquer. Não. Optamos por fundar um “clubinho” que os próprios participantes chamaram de “Monstros”. Idéia requintada, aquela. Enquanto tantos olhavam para a infância pobre, abandonada, pensávamos no significado de prestar atenção nos mais abastados, filhos da classe média. É evidente que não possuíamos consciência plena da armação teórica do que pensávamos. Possuíamos isso sim, intuição. A lembrança mais clara que me vem à cabeça é que num domingo, numa tarde, propusemos um encontro de jovens de nossa geração. Foi no CAST, então num sobrado na Praça Santa Terezinha. Seu Tinho Dias cedeu-nos a chave e fizemos uma espécie de “brincadeira dançante”. Passadas horas, depois de arrumar o ambiente, à saída ele me chamou a atenção para um cartaz exposto na descida da escada “Ninguém é rico o suficiente que não tenha algo a receber. Ninguém é pobre o suficiente que não tenha algo a dar”. Essa frase foi motivo para que ponderássemos muito. Filosofamos e, do pensamento à prática, foi um salto rápido. Resolvemos então fundar o “Clube dos Monstros”. O mesmo “seu Tinho” nos apoiou e cedeu um galpão onde hoje é parte da UNITAU, nos fundos da Reitoria, à Rua Quatro de Março. A proposta era simples, mas de difícil execução: reunir jovens, entre eles meu cunhado Paulo, e propor atividades que os distraíssem dos perigos iminentes, principalmente das drogas. Meninos e meninas foram arrolados e pretendíamos viver uma utopia educacional. Tudo seria resolvido em comunidade, segundo alternativas debatidas em freqüentes reuniões. Por lógico, contávamos com a incompreensão de boa parte de colegas e até de alguns pais. Afinal, questionava-se “por que isso”? E as respostas nos vinham em torrentes: sabíamos da ronda das drogas, da distância entre discursos paternos repressivos e a ousadia permitida pelo consumismo que avassalava a juventude. Nossas atividades eram alegres, com muitas festas, quermesses, bailinhos nos fins de semana e acampamentos. Algumas viagens possibilitadas por pais que se aliavam foram inesquecíveis. Até hoje alguns participantes ainda me abordam falando daquelas aventuras.

É importante repetir que no tempo negro do governo militar, poucas alternativas restavam a quantos supunham um ambiente mais arejado. As manifestações religiosas eram outra saída e eu mesmo mergulhei em projetos agregadores ligados à Igreja Católica. E sempre em parceria com Vanildo. Nossa amizade cresceu, ganhou fibra e ele fez parte inerente da constituição educacional de meus filhos. Freqüentando minha casa, levava-os para passear e ainda ouço os meninos chamando-o de “tio Vadê”. Estou emocionado... Minha mulher gostava muito dele. Demais. Conselheira, acompanhou casos amorosos e vibramos quando Lúcia apareceu em sua vida. Guardo fragmentos encantados de situações como a compra da casa própria, o sucesso profissional, a alegria e orgulho dos filhos bem sucedidos.
Por inevitável, nos afastamos. Questões de mudança de cidade, deveres de viagens comprometidas com trabalho, enfim, trajetos impostos pelo tempo nos distanciaram. Sempre que nos encontrávamos, todas ao acaso, retomávamos lembranças ligadas aos “monstros”. Atualizávamos informações e mediávamos os descaminhos de nosso velho projeto pessoal. Distopias.  A última vez que nos vimos ele, vibrante, falava de uma viagem à China onde visitaria o filho. Convidou-me para compor pequena comitiva. Não pude ir.
Li recentemente algo sobre a “terapia do luto”. Uma das lições propugnadas é o retraço de passagens comuns. Advogo a prática das lembranças boas como forma de recomposição do corpo afetivo de pessoas afastadas pela morte. Estranho isso, contudo. Ao pensar em Vanildo, me resta uma saudade boa. Doída sim, mas tranqüila. Como num carnaval de lembranças, confetes e serpentinas caem e se trançam em respeito a um companheiro que soube idear, que pagou para ver e que guardou na simplicidade de ser o sentido de luta por um mundo melhor. Não me aprecei em escrever um obituário. Pelo reverso, juntei cada letra como uma lágrima capaz de dimensionar sonhos presumidos.

Um comentário:

  1. Me adimiro cada vez mmais com este homem ..gostaria de abraçalo ,todas as vezes que leio suas cronicas ... Lembra quando eu disse que a vida é a arte do encontro ... ai está a prova ..um forte abraço professor ..Miguel

    ResponderExcluir