quarta-feira, 16 de março de 2011

CONTANDO A VIDA 26


O jornal O Estado de São Paulo, de 06 de março, publicou no caderno Cidades, texto do nosso cronista José Carlos Sebe. Nele, o professor discorre sobre 2 visões antropológicas distintas a respeito do significado da festa popular, tão cara a ele.

Repetição Revela Temas Fundamentais
JOSÉ CARLOS SEBE BOM MEIHY


Há quem veja o carnaval como espaço privilegiado para a transgressão social. Outros o compreendem como festa calibrada, capaz de reafirmar andamentos prévios. Tais representações dimensionam certa liberdade ou licença que tanto vale para a crítica social como para externar desejos. Em termos teóricos, dois antropólogos brasileiros se opõem. Roberto DaMatta percebe esse tempo como “inversão do cotidiano”. Renato Ortiz também admite inversão, mas “domada”, garantia de sequências estabelecidas previamente. Afinal, ruptura ou continuidade? Campo de prova por excelência, as escolas de sambas do Rio e de São Paulo servem para testar as duas teses. As letras dos enredos revelam discursos astutos, capazes de armadilhas traiçoeiras para quantos pensam as letras como referentes simples, descartáveis e imediatos. As sutilezas escondidas muitas vezes traem os analistas.
Pensando o carnaval como texto continuado, ele se explica em termos seriais. A repetição de palavras serve, pois, como indicador de temas fundamentais. É na repetição que se opera a construção de um universo de aspirações que afinal, por uma ou outra tese,dimensionam o sentido privado e coletivo do carnaval. A soma das letras e os variados temas aparentemente não têm a ver com o passado ou com outras escolas. Engano. Tudo faz parte do todo e alinhados permitem nexos que implicam o entendimento dos enredos como indicação de críticas ou aspirações.
Nota-se que três ordens de referências constelam os temas: palavras de afirmação afetiva como amor, felicidade; de espaço idílico como teatro, sonho e, de tempo como ontem, agora. Verbos são usados no sentido articulador. Pela tese da inversão, os desejos pessoais se enunciam como possibilidade em um tempo permitido, mas passageiro. Fica também marcado o valor cíclico de uma festa que se repete a cada ano. Neste caso, o amor seria também passageiro, vigorado na inversão de cotidianos difíceis. Para os que entendem o carnaval como continuidade, os sentimentos anunciados no tempo dessas festas é expressão de anterioridades. De certa forma, há conteúdos dramáticos implicados nas palavras usadas por um ou outro caminho antropológico. Para DaMatta a impossibilidade do afeto no dia a dia. Para Ortiz, a consagração dos sentimentos desenvolvidos na surdina cotidiana.

Por sugestão do professor, reproduzo o texto de Roberto Damatta, publicado no mesmo dia e jornal.


O Carnaval é Rito que Libera, Deseja, Solta
ROBERTO DAMATTA


As nuvens de palavras promovem uma reflexão sobre a festa que, até a publicação do meu livro Carnavais, malandros e heróis, em1979, era um tema central entre alguns folcloristas e jornalistas, mas marginal no academicismo. A festa é repetição. É ritual no sentido mais freudiano
do que sociológico. Em Freud, o rito tem componente obsessivo ou reiterativo, pois que se realiza regularmente para limpar a pessoa de algum ato culposo ou impuro. As palavras mostram essa dimensão. Tanto no Rio quanto em São Paulo, que – sem ofensa – inventou a indústria, mas seria uma coletividade a reboque do samba e do carnaval, são evocados um mesmo vocabulário.
Na minha interpretação, o carnaval se funda numa reversão do mundo ou numa inversão hierárquica. Aquilo que era marginal ao sistema, virava foco: malandros, mulheres, sexualidade, rua, escolha, individualismo, competição, pobres e máscaras e fantasias. A vida mudava de lugar: não era mais feita pelo poder, pela política, pelo letrados, mas por “escolas de samba” e marginais do mercado de trabalho. O discurso normativo, feito pelos políticos, virava samba, rima e irrealidade gozosa. Abolia-se o “você sabe com quem está falando?” porque as fantasias substituíam os uniformes e os papéis sociais desempenhados no cotidiano eram deslocados, suprimidos, recalcados e, assim, “invertidos”.
Para mim, entretanto, o dado teórico mais importante do carnaval é o seu aspecto orgiástico. Um dado que a sociologia não tinha como discutir. Pois se a orgia tem a ver com a explosão erótica e como vendaval dos sentidos, como isso pode ser coletivamente planejado? Haveria um elo entre revolta, revolução e carnaval? E a institucionalização do carnaval suprime a revolta porque essa é
uma festa que a esvazia, trazendo à tona o recalcado? São questões que essas nuvens de palavras levantaram em mim.
Ressalto a última inversão. As nuvens são feitas de boas palavras! Não há palavrões ou palavras negativas. O carnaval não usa o verbo parar, mas os verbos da inclusão e do movimento: vem,ama,vai, vou. Na pátria onde o governo diz “não pode!” e o Estado manda parar, o carnaval libera, deseja, solta. Ele compensa os bloqueios do governo que roubam na seriedade e, hoje,em nome do povo. Seria, pergunta-me o sociólogo ingênuo, uma prova de que o vocabulário do povo é feito de palavras felizes? Não – diria eu – é o carnaval como rito, seu burro!

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