quarta-feira, 22 de julho de 2009

DECÁLOGO

Roberto Rillo Bíscaro

Krzysztof Kieślowski foi um diretor polonês realizador de diversos filmes muito queridos pra mim como A Fraternidade é Vermelha. Com mais de 20 anos de atraso assisti à série Dekalog, produzida pra tv polonesa em 1988. Lembro-me quando a TV Cultura (a emissora educativa aqui do estado de SP) a exibiu, mas, por algum motivo que não me recordo, não pude ou não quis assistir.

O diretor fez 10 filmes de uma hora de duração, abordando os 10 Mandamentos. Com exceção do último, que é uma espécie de comédia de humor-negro (meio como A Liberdade é Branca, meu menos favorito na trilogia das cores), os demais são bastante melancólicos, com trilha sonora do fiel colaborador Zbigniew Preisner. Cada episódio apresenta um dos mandamentos tratado como fábulas de ambiguidade moral, ambientadas na Polônia da década de 80. A ambientação é um conjunto residencial daqueles compostos por prédios bem impessoais.

O primeiro filme é Amarás a Deus Sobre Todas as Coisas, que trata de um professor universitário ultrarracional que ensina o filhinho a ser como ele. Na Polônia prestes a se tornar capitalista, vemos o guri Pavel calcular tudo por computador, incentivado pelo pai. Um dia, quando o filho quer patinar no lago congelado (a ambientação no inverno aumenta muito a melancolia da película) pai e filho calculam no computador se o gelo pode suportar o peso duma pessoa. Depois de comprovar que o gelo aguentaria o peso de uma pessoa muitas vezes mais gorda do que o menino, este recebe a permissão pra ir patinar. Obviamente, em se tratando do primeiro mandamento, o amor do homem pela razão pura é desafiado pela tragédia que acontece com o pequeno Pavel, que morre afogado. Num diretor inteligente como Kieslowski, a história não descamba pruma daquelas simples visões infantilizadas de Deus, que supostamente puniria alguém com a vida dum inocente. A julgar pela atitude do pai ao fim do filme e duma imagem que começa a “chorar” pode ser que a tragédia tenha deixado o pai inda mais descrente.

O segundo episódio - Não Tomarás o Santo Nome de Deus em Vão – problematiza com maestria a questão da mentira. Dorota está grávida e seu marido encontra-se gravemente doente, correndo risco de morte. Acontece que a esposa está grávida de outro homem e tem uma dura decisão a tomar: se o marido tiver chance de sobreviver ela abortará, caso contrário, não. O amante lhe diz que se abortar e o marido perecer, isso lhes quitará a chance de ficarem juntos. Dorota está encurralada e procura o médico do marido para saber se há chance de sobrevivência. Depois de muito relutar, o doutor diz a Dorota que não aborte: o marido morrerá. Mas, ele está jurando em falso... Esse falso juramento é pecado ou não?

Em Guardarás Domingos e Festas Sagradas, temos a história de Ewa que telefona para seu ex-amante na noite de Natal para que a ajude a encontrar o marido desaparecido. Os 2 passam a noite andando por Varsóvia, à procura de Ragus e também à procura do tempo perdido. Ao final, a triste revelação de Ewa: tudo não passara duma grande mentira – seu marido a abandonara e ela vivia só. Por isso, ligou para o ex –amante: inventar a história do desaparecimento era a única forma pra ter companhia na noite de Natal. Uma Varsóvia esparsamente povoada, com ruas desertas de carros empresta ar de maior desolação ainda à peregrinação desses 2 Ulisses polacos. Pros que adoram “referências” e “citações”, o pai do menininho morto no primeiro filme aparece por alguns segundos neste terceiro mandamento. Eu não fico atrás dessas coisas, mas dessa vez peguei a referência!

Honrarás ao Pai e à Mãe é brilhante jogo de dubiedade e complexo de Eletra mal resolvido. A estudante de artes cênicas Anna descobre uma carta escrita pela falecida mãe dizendo que seu pai não é seu pai. O desejo erótico entre “pai” e filha é latente e, agora que ela não é mais sua filha de verdade, pode acontecer algo entre eles? Mas, Anna estuda pra ser atriz, em última instância, estuda pra ter carta branca pra mentir. Ao final do episódio, quando achamos que parte da situação se resolve Kieslowsky joga mais um gravetinho na fogueira. Simplesmente genial, simplesmente genial!

O quinto episódio, Não Matarás, acabou transformando-se em longa metrgem posteriormente. Lembro-me de que quando vi o longa, impressionou-me a crueza das mortes, não no sentido hollywoodiano, mas sim em termos de “realismo”, de agonia. O tristíssimo episódio anti-pena de morte do Decálogo também me impressionou pelo mesmo motivo. Um jovem de cabelo meio punkoso (preconceito do diretor?) assassina, aparentemente sem motivação, um motorista de táxi e é condenado à morte. A construção das personagens é brilhante, uma vez que o motorista não é um ser humano totalmente gostável e o assassino, ao final, prova não ser (tão) monstruoso. Pergunto-me se Tim Robbins não foi influenciado pelo diretor polonês em seu Dead Man Walking. Se foi, o Kieslowsky ganha, e de longe. Curioso que neste episódio, o diretor dá um tratamento especial às imagens através de filtros que ora tornam-nas mais envelhecidas, ora conferem pervasiva tonalidade amarelo-esverdeada à película, que contrasta com alguns vermelhos estrategicamente colocados. Normalmente, eu talvez nem tivesse me dado conta disso tudo porque não me ligo muito a imagens, fotografia, artes visuais. Entretanto, durante a tarde, um inteligente jovem daqui havia me dado uma miniaula do uso das cores verde e vermelho no filminho da Amelie Poulin (argh!).

O sexto mandamento/episódio é Não Cometerás Adultério. Este episódio também virou filme pra cine posteriormente e no Brasil recebeu o título Não Amarás. O jovem Tomék, de 19 anos, nutre amor platônico meio doentio por uma mulher mais velha. Ele forja avisos do correio pra que a moça vá à agência onde trabalha, arruma emprego de entregador de leite só pra entrar no prédio onde a mulher vive, observa-a diariamente através duma luneta e mais. Quando o jovem finalmente se declara, ela o rejeita e espezinha. Após tentativa de suicídio o jovem passa dias no hospital e a mulher começa a sentir sua falta, afinal, Tomek era o único que realmente a amava. O final é poderosíssimo. Não vou contar, mas é apenas uma frase dita por Tomék e a face da atriz reagindo a ela; um final quieto como de resto todo o filme. Um filme que trata sobre esperanças, sonhos e amores desfeitos e no qual a questão do adultério é muito mais emocional do que realmente carnal. De certa forma, a mulher do apartamento frontal a Tomék comete adultério porque trai a única pessoa que realmente a amou na vida. Fino, fino, fino. Assim como Machado de Assis é superior a seus pares brasileiros e portugueses por tratar da suspeita do adultério e não do adultério em si, Kieslowsky nos brindou com essa sútil e ambígua história de “adultério”.

Não Roubarás novamente nos brinda com um dilema moral muito bem construído e situação bastante ambígua e complicada, cheia de nuances. Ania, garota de 6 anos, é criada achando que Majka é sua irmã mais velha. Na realidade, é sua mãe, ao passo que a mulher que Ania chamava de mãe é sua avó. Majka rapta Ania, leva-a para a casa do pai, ameaça fugir pro Canadá, mas ao final, é encontrada por Wanda, sua mãe/avó de Ania. O filme nos lança diversas questões: pode-se roubar o que é seu de direito? Quem, afinal, é a mãe: a que pare ou a que cuida? Majka tem sua motivação pra fazer o que faz, Wanda também tem, enfim, o espectador se depara com questões para as quais o filme não oferece respostas prontas ou redentoras. Além disso, há uma série de pequenos outros “roubos” no episódio: Majka teve a juventude roubada, o pai dela parece ter tido sua masculinidade confiscada e, ao final, a pequena Ania é quem paga o pato pela infantilidade dos adultos, sendo também roubada emocionalmente. O episódio termina com uma expressão facial de dor na atriz-mirim que é difícil esquecer. Ave Kieslowsky!

Não Levantarás Falso Testemunho até agora foi o episódio que me pareceu mais fraco, o que significa que é bom e não ótimo como os demais. Uma judia volta à Polônia pra confrontar a mulher que havia se recusado a protegê-la quando criança durante a guerra. A menina judia poderia ser batizada como católica por um casal, mas a mulher se recusa a fazê-lo alegando que não pode jurar falsamente em questão sagrada. A questão instigante – levantar falso testemunho pra salvar a vida duma criança seria realmente pecado? – é respondida no episódio sem deixar muito espaço à ambiguidade e contradições existentes nos demais, e que levam o espectador a ter de pensar sobre o fato. Outra coisa que me pareceu algo preguiçoso nesse roteiro foi colocarem a senhora recusante como professora justamente de Ética e a revelação da identidade da judia exatamente durante uma das aulas. Estratagema bem pouco criativo e “fácil” demais. Entretanto, algo que não comentei até agora pode ser dito neste episódio do qual não gostei tanto. Kieslowsky sempre representa cenicamente o conflito do qual trata tematicamente. Neste episódio, por exemplo, a judia volta a Varsóvia querendo endireitar, consertar seu passado. No apartamento da velha senhora que a recusara existe um quadro que insiste em não ficar reto na parede, um abajur que não cessa de piscar. Enfim, elementos que também precisam de conserto e correção. De todo modo, um Kieslowsky menos inspirado é ainda um Kieslowsky muito mais inteligente e bem feito do que 90% do que vejo por aí.

Não Desejarás a Mulher do Próximo traz a angústia do médico que se descobre permanentemente impotente e sugere à esposa que arrume um amante para satisfazer suas necessidades carnais. Quando evidências sugerem que a esposa realmente arrumou alguém pra preenchê-la (oops!), ciume, dor e pensamentos suicidas afloram na cabeça do médico. O episódio é repleto de cenas e sugestões que remetem ao ato sexual, como quando o Dr. Roman se oferece pra ajudar um homem a colocar a mangueira de gasolina no tanque do carro. A impotência sexual de Roman está presente em outras camadas de interpretação do episódio: Hanka, a esposa, não sabe porque arrumou um amante, o qual, por sua vez , não tem voz ativa no caso entre os dois. O final do episódio me pareceu excelente com a ideia de se prestar atenção às coisas boas que se têm e não às coisas que não se tem.

O décimo episódio, Não Desejarás os Bens do Próximo, encerra o decálogo em tom mais leve e embalado ao som de música punk (cuja letra fala em desrespeitar os Mandamentos), contrariamente aos melancólicos temas instrumentais e algo operísticos dos demais filmes. 2 irmãos herdam a valiosa coleção de selos do pai e tentam a todo custo – inclusive através da venda de um rim – conseguir um selo que faltava pra completar uma série e deixar a coleção inda mais valiosa. A ambição dos irmãos é punida e chega até a instituir a desconfiança entre os 2, a qual, entretanto, volta no fim do filme, que sugere o recomeço de um ciclo. O relativo bom humor e agilidade do episódio acabam escamoteando a ideológica lição de moral final: “quem tudo quer, tudo perde”. Quando o Bill Gates perderá então? Tô esperando pra ver! Definitivamente, prefiro o Kieslowsky mais macambúzio.

Exceto por um par de episódios, o Decálogo é uma lição de inteligência na TV. Certa e fartamente usado como referência e fonte de inspiração pra muito diretor norte-americano por aí, que, por terem mais popularidade e acessibilidade, acabaram ganhando a tão valorizada pecha da “originalidade”.

Demorei 20 anos pra finalmente assistir à série kieslowskyana, mas sabem duma coisa? Se tivesse visto isso no início dos meus 20 aninhos, muito, mas muito mesmo, teria me passado batido. Foi bom assistir aos 42. Daqui a 20 anos espero poder rever. Aguardem, daqui a 2 décadas escreverei novas impressões.


Existem vários vídeos com trechos da excelente trilha sonora; escolhi um do episódio Não Cometerás Adultério.

Um comentário:

  1. Excelente a obra, acabei de ver também.

    Abraços,

    Lenilson Moutinho
    Mogi das Cruzes - SP

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