domingo, 19 de junho de 2011

A CORRIDA DA SUPERAÇÃO


Sempre gostei dos meus pés. Se eles já soubessem que caminho seguir, teriam me levado para longe quando minha mãe me abandonou, recém-nascida, na porta de uma instituição ligada à antiga Febem, em São Paulo. Era 1962. Fui deixada dentro de uma caixa de sapatos. Cresci com muitas crianças, mas sem nenhum amor. Na escola, só aprendi a alimentar o medo. Tenho medo de tudo: de carro, de gente, do escuro. Aos 10 anos, ainda estava na 1ª série. Sentia fome, não tinha vontade de estudar. Aos 18, fui encaminhada para meu primeiro emprego. Trabalhei cinco meses como empregada doméstica, mas a patroa não me pagava. Um dia em que ela não estava em casa, enchi várias malas com objetos de valor e fugi para o centro de São Paulo. Distribuí o que roubei para o povo que vivia na praça da República. “Comprei”, assim, lugar para morar.
Nas ruas, ninguém respeita as mulheres. Mendigos tentaram me estuprar, me bater. Para me proteger, simplesmente raspei os cabelos e me vesti de homem. Em pouco tempo virei líder de um bando de trombadinhas. Eles me chamavam de Tia Punk. Depois de um mês vagando pela cidade, descobri as drogas. No começo, sentia tanta fome e tanto frio que usava o que aparecesse: cola de sapateiro, benzina, gasolina... Com o tempo, essas drogas não me satisfaziam mais. Para mergulhar na cocaína, caí no crime.
Sustentar o vício era uma maratona: roubava comida, roupas, bolsas, ia até a boca, o ponto-de-venda, e trocava tudo por cocaína. Fui presa várias vezes, apanhei para entregar os traficantes, mas nunca falei nada. Eu só não conheço todas as delegacias de São Paulo porque minha especialidade era correr da polícia. Certo dia, em uma dessas “provas de longa distância”, parei em frente a uma loja de eletrodomésticos cheia de televisões na vitrine: em todas passava o filmeCARRUAGENS DE FOGO, a história de dois corredores. Falei para os meninos do bando: vou correr assim. Um dos trombadinhas disse que, como eu era viciada em drogas, não conseguiria treinar. Respondi: “Se corro da polícia, também posso correr na rua”.

Com essa idéia na cabeça, “encomendei” equipamento para os amigos do bando, que assaltaram vários atletas. Aos 34 anos, com tênis, bermuda e camiseta roubados, comecei a treinar sozinha e fui parar na maratona de São Paulo. No final dos 42 quilômetros da prova, eu finalmente me encontrei. Era aquilo que eu queria. Mas, para correr, não podia me drogar: passei dias rolando na calçada, amargando a abstinência e as contusões.
Em 1998, eu morava sob as marquises próximas do Parque do Ibirapuera e passei a correr lá. Achava que era invisível para as pessoas da sociedade, mas alguém me enxergou. Era o dr. Fausto Cunha (na época, secretário de Esportes da Prefeitura). Ele percebeu que a corrida podia me recuperar. Me levou para um alojamento de atletas, me ofereceu abrigo, tratamento para conseguir deixar o vício, comida. Adoro ele e sua esposa, visito a casa deles, até Natal eu passo lá.

No início, o técnico Wanderley Oliveira não acreditou em mim. Disse que só ia me treinar se eu largasse todas as drogas, me cuidasse e me dedicasse muito. Sempre cumpri tudo o que prometi. O mais difícil era vencer o meu medo. Nunca aprendi a receber carinho, era arisca como um bicho. Por causa disso, ganhei da turma da corrida o apelido de Animal. E eu treinei como um animal. Corri contra tudo: contra o preconceito, a tristeza, o vício. Sofri demais com o rigor exigido pelo esporte, mas valeu a pena. Cada gota de suor na pista era a minha glória na linha de chegada.
Aos 40 anos, bati dois recordes brasileiros, nos 800 e 1,5 mil metros. Em 2006, venci a meia maratona de Santiago, no Chile; na Argentina, fui a terceira colocada na meia maratona de Buenos Aires. Percorri o Brasil inteiro graças a alguns patrocínios, à ajuda de tantos amigos e, principalmente, aos meus pés.
Sobrevivo por causa deles e das premiações. E ainda me perguntam se venci na vida! Comecei a vencer quando ninguém mais acreditava em mim e agora, aos 46 anos, não penso em parar. Tenho sonhos e pressa de seguir em frente. Ainda moro no abrigo da Prefeitura. Quero uma casinha para mim, mesmo que seja de um cômodo só, sem banheiro. Basta um canto para acomodar todas as minhas centenas de medalhas.
A primeira que ganhei pendurei no pescoço daquele amigo das ruas que dizia que eu não era capaz de correr sem ter uma arma apontada para mim. Provei a ele que eu posso. Para mim, não preciso provar mais nada. 
ANA LUIZA DOS ANJOS GARCÊZ, 45 ANOS, ATLETA
(Encontrado em http://claudia.abril.com.br/materias/3197/?sh=31&cnl=31)

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