quarta-feira, 6 de abril de 2011

CONTANDO A VIDA 29



Na crônica de hoje, o professor José Carlos Sebe embrenha-se novamente no mundo da literatura e detecta um matiz convenientemente deixado de lado por muitos comentaristas da obra de Jorge Amado: o preconceito étnico.  

JORGE AMADO, OS ÁRABES E EU.

José Carlos Sebe Bom Meihy.

Desculpem-me, mas meu gosto por Jorge Amado é fracionado. Em mim o juízo sobre a vasta produção do escritor baiano se compõe de dois cacos que não se emendam e até se contradizem. Um pedaço reconhece o óbvio: saúda o profícuo autor que tão bem articula histórias, constrói suspenses na tessitura do cotidiano, movimenta personagens vulgares com picardias heróicas. Mas não consigo me esquecer do “outro” Jorge Amado: das capitulações políticas, da rendição ao coronelismo baiano de ACM e da incapacidade de bons romances universais ou de fora da paisagem do Recôncavo. Deve haver algo defensivo nisso, não nego. E no inventário das detratações elejo alguns aspectos incômodos e, entre outros, sobretudo o preconceito contra os negros e mulatos e os seus cacoetes em relação aos árabes. E há um momento em que ele une os dois tipos e então tenho certeza de que o dele é um olhar elitista e bastante excludente, oligarco e conservador. E ao contrário do propalado, na escrita de Amado não há lugar para a democracia racial.
Em face do tratamento dado aos árabes, Jorge Amado é perversamente dúbio, pois afaga e depois os “coloca no lugar”, como cidadãos de segunda ordem. Ou pelo menos sem posto na possível mobilidade social de um Brasil que fora de suas páginas pode mudar e ser socialmente mais plural. Ao mesmo tempo em que os integra em tramas que implicam capoeiristas, prostitutas, bandidos, coronéis, doutores, forasteiros e jagunços, junta portugueses, espanhóis e “sírio-libaneses”. E os árabes não são poucos e nem sem destaques nos enredos. Veja-se, por exemplo, entre tantos: Haddad, devorado pelos tubarões em “Mar Morto”; o libanês Mahul de “Tenda das Milagres”; dona Maria, proprietária de todo o sótão do sobradão da Ladeira do Pelourinho em “País do Carnaval”; Nicolau, fazendeiro de “Jubiabá”; o cronista Roberto Sabad de “Tenda dos Milagres”; Zebedeu, filho de árabe em “Suor”. Isto sem falar dos muitos outros. Indo adiante, é claro que para avaliar a intimidade de Jorge Amado com os árabes não cabe esquecer o seu importante “A descoberta da América pelos turcos” em que relata a chegada de Jamil Bichara à Bahia, precisamente a Itabuna, no começo do século XX. Aliás, foi com este enredo sobre os árabes que ele saudou os 500 anos da “descoberta da América” e isso não é pouca coisa.
Mas, logicamente, não se pode esquecer o mais importante dos árabes de Jorge Amado: o simpático Seu Nacib, de “Gabriela, Cravo e Canela”. Aliás, é exatamente nele que se reconhece o ápice da combinação do preconceito do escritor baiano: a desejada mulata, apesar de freqüentar a fantasia de toda elite masculina de Ilhéus, apenas se casa com o árabe. Como casamento na oligarquia suposta por Jorge Amado é a base da família respeitável e concentradora da renda fundiária, não cabia a um coronel, ou filho dele, se ligar à mulata que, segundo a doída tradição da literatura brasileira, não serve para se casar com alguém da elite branca. A aliança mulata-árabe, no caso de Gabriela e Nacib, coroa o universo de preconceitos de Jorge Amado. E tem mais; vejamos como os árabes são conhecidos em seus textos: “turcos”, “comerciantes”, “libaneses”, “sírios”, “mascates”, “patrícios”, “gringos”. E há também “malandros filhos de árabes” e “fogosas filhas de sírios”. E quantos árabes anônimos circulam por seus textos!
Sei que, contudo, sem essas menções os árabes estariam ainda mais excluídos do registro literário nacional, mas será que não existe outra face para essa moeda que faz circular subalterna a identidade árabe-brasileira? Na literatura brasileira, não deixa de ser cruel o destino tanto decretado às nossas mulatas como aos árabes em geral. A eles sempre caberia animar a cena, dar viso às histórias, mas como personagens periféricos, mesmo quando na aparência se constituem temas centrais.

Um comentário:

  1. Li muitas obras de Jorge Amado e confesso que nunca tinha observado por este ponto de vista. Muito interessante. Sempre tive a sensação que como todos (ou quase todos) os baianos, enaltecer sua terra como "parque dos desejos", é um hábito. Mas a crônica tem muito fundamento. Vou reler Gabriela e observar melhor esse "entrelinhas".

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