sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

CRANFORD, O LIVRO

Roberto Rillo Bíscaro

(Talvez interessem ao leitor meus comentários sobre a minissérie da BBC, baseada no livro.
http://www.albinoincoerente.com/2009/06/cranford.html)

Aproveitei as férias pra fazer algo que nem sempre posso: ler romance! Leio mais teoria literária e teatral do que romances, então resolvi dar um tempo e peguei a edição de Cranford, da inglesa Elizabeth Gaskell, que jazia na minha estante há anos, jamais sequer folheado. Publicado em 1853, a autora inicialmente não idealizara Cranford como romance. Oito quadros do que viria a ser o primeiro capítulo do livro, foram publicados em dezembro de 1851, no periódico Household Words, editado por Charles Dickens. Tamanho o sucesso que Gaskell cedeu e terminou por escrever um de seus romances mais queridos pelo público leitor.

Essa falta de intenção de compor obra mais avolumada e coesa pode ser a explicação pra forma episódica que a obra assume em seus primeiros capítulos, até adquirir forma mais unificada de romance mesmo, com sequência linear de ações dando origem a ações seguintes.

Cranford é o nome da aldeia fictícia, situada ao lado da também inventada Drumble, grande cidade comercial e algodoeira (a equivalente à Manchester, de Gaskell). O foco central do romance incide nas chamadas “Amazonas”que dominam a sociedade cranfordiana. Na fração social “que importa” do bucólico e idealizado lugarejo, os homens inexistem: ou morreram ou trabalham a semana toda na vizinha Drumble. As protagonistas do livro são senhoras de idade avançada, pobres, mas que habitam um mundo cuidadosamente construído e codificado pra mostrar aparência de aristocracia.

Com renda limitada, as senhoras de Cranford têm que se esmerar na economia. Assim luxo e riqueza são considerados coisas vulgares pelas simpáticas madames de meia pataca. Quando uma Lady escocesa de terceira categoria vem viver em Cranford, é aceita pelo grupo facilmente porque não comete a “vulgaridade de ter dinheiro”.

Dentre essas velhinhas, o centro das atenções recai sobre a adorável Miss Matty. Quando o livro engata como romance, é ela ao redor de quem giram as historias e a simpatia maior da narradora. Quando Matilda Jenkyns perde todo o dinheiro, aplicado num banco, a alternativa é abrir uma loja pra vender chá e doces. Há um dilema porém: como uma dama dedicar-se-ia a algo tão plebeu quanto lucrar, trabalhar em ou manter um estabelecimento comercial? No fundo, a questão é uma que dividia, grosso modo, s setores da sociedade inglesa: a aristocracia não trabalha a não ser gerindo suas terras; trabalhar no comércio ou indústria era coisa pra grosseira burguesia... A solução achada no romance é uma de meio termo: Mis Matty abriria a loja, sem admitir realmente que era uma loja ou que ela lucraria com o estabelecimento. Um acordo tácito entre os habitantes da cidade garantia que a farsa fosse mantida. Aparências

O romance lança olhar entre irônico e enternecido a essas aparências mantidas a todo custo por essas senhoras de Cranford. Claro que a narrativa funciona como parte da missão histórica da burguesia de solapar a derrotada nobreza; isso fica evidente na nuvem de anacronismo na qual Cranford e seus costumes pseudo-gentílicos flutuam.

A narradora é filha de um cranfordiano que abandonou o local e dirigiu-se a Drumble pra se tornar um “vulgar” homem de negócios, o qual é permitido na narrativa apenas quando vem em socorro de Miss Matty, quando de sua bancarrota. A narradora, portanto, é filha da tal classe vulgar que ganha a vida trabalhando, mas mesmo assim, compartilha boa parte do esnobismo falido das amigas mais velhas. Outra pista que Gaskell nos dá pra perceber o anacronismo quase comovente em que vivem as personagens. Pra completar a ironia, Gaskell batizou sua narradora de Mary Smith: impossível pensar em nome feminino mais “vulgar” em inglês!!

A crítica semi-velada ao esnobismo e à pseudo-pompa gentílica, entretanto, trai laivos de fascínio pelo sistema de classes que a burguesia fingia desprezar tanto. Lady Glenmire, a escocesa da baixa nobreza, casa-se com o vulgar Mr. Hoggins, médico local, tolerado pela necessidade que sua profissão lhe outorgava, mas nunca convidado pras festas das senhoras da imaginada elite local porque era assaz grosseiro: imaginem que cruzava as pernas ao sentar!!! Lady Glenmire não apenasse casa com o doutor, mas abdica de seu título e passa a ser chamada por Mrs. Hoggins. Escândalo!! Mas, que significado passa a ter na narrativa uma personagem assumidamente da classe burguesa cujo sobrenome é Hoggins? Pra quem não sabe, ‘hog’ é um sinônimo pra ‘porco”...

Aliás, é em função desse sobrenome que uma das frases mais deliciosas do livro foi gerada:

Mr. Hoggins was the Crarnford doctor now; we disliked the name and considered it coarse; but, as Miss Jenkyns said, if he changed it to Piggins it would not be much better.

Outra delícia foi quando Mrs Jamieson (The Honourable Mrs. Jamieson!) deixou de conversar com a cunhada, Lady Glenmire, porque ela se rebaixou casando-se com um plebeu. A sociedade local não achou a rixa prudente, afinal, Mr. Hoggins era médico e todos necessitariam de seus serviços algum dia. E então, a pérola:

Miss Pole grew quite impatient for some indisposition or accident to befall Mrs. Jamieson or her dependents, in order that Cranford might see how she would act under the perplexing circumstances.

Mais do que construtora de sentenças irônicas, Gaskel construiu uma história inteira que em muitos momentos é encharcada de ironia, embora o final em forma de festança onde todas as arestas estão perfeitamente aparadas, traia – nos recônditos da autora – a vontade utópica de uma sociedade intocada pelo comércio e pelos novos tempos. Uma utopia distorcida, portanto...

(As aparências das senhorinhas de Cranford me lembraram das Aparências, do Márcio Greyck.)

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