segunda-feira, 21 de junho de 2010

O TRIUNFAL FRACASSO DE ELIZABETH GASKELL

Roberto Rillo Bíscaro

No dia de Natal, postei sobre Cranford, romance da inglesa Elizabeth Gaskell: http://www.albinoincoerente.com/2009/12/cranford-o-livro.html . A simpática ironia idílica da autora despertou a vontade de ler outro volume acumulado na estante: Mary Barton.

Publicado em 1848, o romance foi duramente criticado pelos manufatureiros de Manchester, cidade onde se passa maior parte da trama. Os fabricantes acusavam Gaskell de insuflar a classe operária, devido às descrições proto-realistas das condições apavorantes de vida dos trabalhadores famintos e analfabetos e suas famílias.

1848 foi um ano-barril-de-pólvora em diversas partes da Europa, devido às revoltas populares exigindo melhores condições de trabalho e vida. Uma espécie de cobrada de conta: a burguesia-patroa foi posta contra a parede para colocar em prática a “igualdade”, parte da tríade ideológica da Revolução Francesa. Como se sabe, foi aí que muitos perceberam que a nova classe no poder não estava disposta a compartilhar o osso. Em meio a essa onda que sacudia o continente, não causa espanto a indignação dos senhores de Manchester contra a bem-intencionada e cristã Sra. Gaskell.

O título da obra faz supor que a história esteja centrada na figura da protagonista, Mary Barton. Ledo engano, pelo menos nos dez capítulos iniciais, nos quais a moça não protagoniza nada. Gaskell usou cerca de um terço de seu livro para descrever as condições precárias de vida dos trabalhadores de Manchester e contrapô-las à opulência acintosa de seus patrões, que, se reclamavam do mau andamento dos negócios, não se furtavam em desperdiçar dinheiro enquanto seus empregados passavam fome.

Marx e Engels - separadamente e sobre autores distintos – disseram que aprenderam mais sobre as condições de seu tempo com a literatura do que com os historiadores á mão. Gaskell pode ter sido um desses autores. Mary Barton escapa da vala-comum justamente por causa do interesse sociológico que desperta.

Além da descrição das condições econômicas do proletariado, Gaskell – como Dickens - esteve entre os primeiros escritores a narrar a experiência da cidade grande, das estradas de ferro, do mundo novo que o capitalismo industrial criava. O capítulo 26 mostra Barton indo a Liverpool pra participar do julgamento de seu amado. A descrição mostra a confusão despertada em alguém que usava o barulhento e veloz serviço ferroviário pela primeira vez. Descreve a fumaça por cima de Manchester, enfim, a experiência do zum-zum-zum da cidade moderna e suja, o começo de nossa experiência. Mesmo andando de trem pela primeira vez e indo pruma cidade estranha, Mary não se intimida com Liverpool. Segue sem dificuldades as instruções dum guarda, afinal, era uma garota urbana!

Esse triunfo temático de Gaskell, entretanto, é alcançado mediante fracasso formal, no caso do romance Mary Barton. A escolha do nome duma moça como título dum romance de meados do século XIX implicava uma narrativa que girasse em torno dos problemas individuais da personagem. Jane Eyre e Lucíola não me deixam mentir... O primeiro terço de Mary Barton, porém, está profundamente desacelerado em termos de narrativa individual – sugerida pelo título escolhido pela autora. Ou seja, é como se Gaskel tivesse escolhido uma coisa e a narrativa tivesse ido pra outra direção. Esteticamente, isso é defeito formal, porque a autora tentou botar um bolo “social” numa assadeira individual, resultando num desnível enorme entra as duas partes nas quais poderia ser dividida a obra.

Mary Barton, a personagem, é a linda filha dum operário, cobiçada por um jovem pobre o outro rico, no inicio opta pelo rico, mas depois reconhece que ama o pobre. Pouco disso ocorre nas primeiras 100 e tantas páginas do livro. Depois, quando ocorre, o livro vai de policial, pra court drama, pra melodrama, com direito a assassino pobre morrendo nos braços do rico pai do jovem assassinado. E sendo perdoado! Se tivesse sido por isso, Mary Barton, livro e mocinha idealizada, teriam ido pra cova rasa...

A despeito dos ataques dos patrões de Manchester, a crítica social de Gaskell não vai mais longe do que sugerir que o sofrimento – fonte de purificação cristã - uniria patrões e empregados, porque aqueles compreenderiam melhor estes e fariam o possível pra minimizar as agruras do operariado. Sintomático, porém, que John Barton vá a Londres na esperança de ser ouvido pelo Parlamento, mas o grupo e trabalhadores sequer é admitido. 1848...

Se Gaskell acreditava na harmonia entre patrões e empregados através das lições do sofrimento, não cria na “regeneração” de alguém que quebrara a sagrada castidade reservada às mulheres. Esther, a tia de Mary, que se “perdera” depois de haver fugido com um jovem, não ganha a chance de emigrar pro Canadá, pra recomeçar, como as demais personagens. Prostituta e alcoólatra, a personagem acaba enterrada na mesma sepultura do assassino. Na mentalidade da temperança da classe-média inglesa da época vitoriana, liberdade sexual e assassinato eram imperdoáveis.

(Lembram de Jane e Herondi? Antes de cantarem em português, eles gravaram sob a alcunha de Manchester, em inglês.)

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