quinta-feira, 17 de junho de 2010

ALVO ÁLVARO – III

Hoje, publico outra aventura do personagem albino Álvaro, criado pelo escritor, também albino, Flávio Silva.

Flávio manifestou desejo de tornar o personagem e suas experiências em criação coletiva.

Como?

Vejamos o que o próprio Flávio me escreveu:

Gostaria que os leitores do blog sugerissem situações que gostariam de ver retratadas na vida conturbada (e por que não frustrada) de nosso personagem. Uma espécie de criação coletiva, onde a ideia seria creditada no final do texto.

Pronto, Flávio, sua idéia está lançada.

Aos leitores que desejarem colaborar, o email do Flávio é flaviosilva@gtechlogistica.com.br

E agora, sem mais delongas, vejamos o que Álvaro tem pra nós desta vez...


ALVO ÁLVARO III

(Prólogo)

“Álvaro é um garoto como tantos outros por aí: um novato no mundo dos adolescentes, sofrendo com as transformações não assistidas de seu corpo, de sua voz e de sua vida.
Ele sonha em ser ator profissional de teatro, se casar e ter quatro filhos.
Ele é inteligente e tem visão de futuro, o que ele não tem mesmo é boa visão no presente, nem melanina no corpo.
Ele é Albino.
Vejamos até onde isso faz diferença”.

LIÇÕES DE AREIA
(Primeira Lembrança)

Deitado de bruços, apertava os olhos para ver as meninas caminhando rente às ondas. Suas curvas chamavam a atenção de Álvaro mais do que vídeo game ou imitação de animais. Não sabia ao certo desde quando, mas tinha certeza de que precisava de uma garota. Queria a companhia, o cheiro e principalmente os beijos. Ah, os beijos!
Lembrou-se de seu primeiro beijo com uma minúcia de detalhes que o fez umedecer os lábios sem querer:
A moça, pele morena cor de jambo (pelo menos é assim que ela dizia), usava uma blusa cinza de alças finas que deixava à mostra seu piercing no umbigo e os cabelos soltos na altura dos cotovelos. Lisos. Alisados. Lindos. Ela se aproximou, envolvida pelo momento, fechou os olhos e segurou suas mãos suadas, afinal ele também se deixou envolver pelo momento. Uma música romântica começou a tocar e a luz diminuiu. Seus rostos moveram-se de encontro um ao outro: ela de olhos fechados e boca um pouquinho aberta, ele de olhos bem abertos para comprovar e se lembrar daquele acontecimento. Os lábios se tocaram. Úmidos e quentes. Ele fechou os olhos e o mundo parou. Nada mais parecia real: o chão, o frio do ar condicionado, a luz, a música e foi então que ouviu:
- Aí! Acorda garoto. Você perdeu a sua fala!
Era o diretor do teatro censurando sua distração. E pior:
- Vai sentar, Álvaro, e volta para este planeta. Lê o texto do vilão e se prepara para testar este personagem. Lucas! Vê se você consegue fazer essa cena direito...
Álvaro despertou de seu sono repentino. Havia babado na toalha de praia sob a qual se deitara, enquanto as meninas saíram para comprar óculos de sol e sorvetes. Sabia que ficar ali estatelado como uma lagartixa não era nada sadio para ele, mas o que lhe pareceu nada sadio socialmente era dizer não a um convite de Lilica para se deitar junto dela na toalha.
- Cara você é mesmo um otário.
A voz de Plínio o despertou completamente e ao se virar para olhar o amigo, sentiu as costas arderem como brasa viva.
- Já te falei para parar de dar mole para tudo que é calcinha que vem falar com você, cara.
- Deixa de ser careta, Plínio. Acha que esta vai ser minha primeira queimadura de praia? Não. E nem vai ser a última.
- Eu sei que não, você já disse, mas você não está entendendo que está se arriscando pelos motivos errados. Ao invés de vir e se expor em nome da amizade e de um dia legal, uma exceção entre os dias comuns, você está fazendo isso por conta de uma garota que não está nem aí para você! E mesmo se ela estivesse, deveria se tocar que te pedir este tipo de coisa é maldade.
- Você tá parecendo meu pai.
- Você não tem pai. Não sabe como é ter um, pois para começo de conversa, se tivesse, ao contrário de mim, ele seria ouvido quando disse para você não vir à praia neste horário!
Álvaro sentiu o ar ser roubado de seus pulmões. Pegou pesado com o amigo que, assim como ele, também não conhecia seu pai, e que apesar de ser apenas dois anos mais velho, sempre tenta protegê-lo da melhor maneira possível. Sem passar a mão na cabeça, jovem não sabe fazer isso. Jovem fala a verdade.
- Eu me sinto seu irmão mais velho, mas vejo que nem isso você entende mais – Plínio se levantou recolhendo seus pertences e começou a partir - Quero ver então você pedir a uma destas calcinhas para te encobrir dois dias em casa para sua mãe não ver que você tá salpicado de bolhas nas costas!
Foi aí que Álvaro viu, novamente, que aquele não era o tipo de situação que o ajudava a mostrar para o mundo que ele era normal. Mudou sua definição de normalidade muitas vezes, mas a adolescência distorce a razão de qualquer ovelha bem intencionada. Ele era normal, mas também albino e por mais que pudesse mentir sobre seu estado, suas costas não mentiriam sobre suas dores e não se calariam por conveniência.
Álvaro se apressou para ir até o chuveiro público, próximo do quiosque mais perto,
e se lançou abaixo dele como se sua vida dependesse disso. A água caiu malvada em suas costas a ponto de imaginar o chiado da água fria na chapa quente que outrora chamou de costas. Depois, o conforto foi se instalando devagar. Vestiu a camiseta ainda embaixo d’água para poder molhá-la e aumentar a sensação de frescor quando saísse dali. Juntou suas poucas coisas, “vestiu seus óculos” e só então deixou de sentir-se exposto, mas ainda desconfortável consigo mesmo.
Girou para todos os lados a fim de encontrar Plínio. Sabia que não o enxergaria, mas torceu para que seu amigo tivesse voltado a vestir sua camisa verde florescente. Sorte. A sua direita um ponto “brilhante” e fora de foco encolhia a passos lentos. Correu. Correu como nunca até alcançar seu amigo encostado na haste de madeira que marcava o ponto de ônibus. Já chegou falando, resfolegado:
- Desculpe - O ar se foi, teve de parar e apoiar as mãos nos joelhos, os óculos quase caíram com o vigor do movimento – Desculpe ser um idiota com quem está sempre do meu lado.
Plínio, seu amigo de pele negra, suava embaixo daquela camisa florescente e se Álvaro não o conhecesse bem, diria que aquela linha escorrendo por seu rosto não era suor, mas uma lágrima. Mas ele não era assim. Ele não chorava de raiva. Ele ria. E foi isso que arrepiou Álvaro, pois seu amigo virou o rosto para ele ensaiando um meio sorriso e disse:
- Você tá ligado que amigos são como as ondas do mar, né? Parece que vão embora, mas voltam. Ás vezes, mais fracos e às vezes te dão um caldo, mas sempre voltam ou não são amigos... Não são ondas.
- Eu sei... - respondeu sem jeito pelo modo com que a lição estava sendo colocada ali em público, duas senhoras e uma criança chorosa.
- Então você escuta bem, cara: não seja como o sal das ondas que se solta para não voltar mais. Se você vacilar os amigos vão embora e não querer dizer que eles não eram amigos, mas sim que você decidiu ser o sal.
- Eu sei...
- Não sabe nada! Se soubesse não tava pagando de Don Juan de Merda! Para de posar de sabe tudo e abaixa a bola. Hoje você errou e errou feio... Eu só não vou te encher muito porque você já vai ter motivos para se lembrar de hoje.
- Mas, a gente nem se despediu das garotas...
- Elas levaram as coisas dela e você tá com a toalha da Lilica. Ela vai te procurar e só então você vai entender que as pessoas vão e vem da sua vida, mas isso só vai acontecer se você estiver vivo e saudável, ou acha que ela vai querer beijar um camarão repleto de bolhas e até feridas?
Ele ia responder, mas o sorriso de Plínio se formou de novo e a única resposta que emitiu foi um suspiro e não falou mais nada até chegarem na casa do amigo e ser encaminhado para um banho de verdade.
Embaixo do chuveiro na casa do amigo, Álvaro olhou para seus pés e a camada de areia e algum sal do mar indo pelo ralo e se decidiu:
- Não quero ser o sal.

(Sucesso nos anos 80, essa canção teve até versão brasileira.)

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