sexta-feira, 24 de maio de 2019

PAPIRO VIRTUAL 133

Roberto Rillo Bíscaro

Agatha Christie voltou a estar de moda. Mesmo que seu estilo detetivesco esteja ultrapassado pros atuais padrões de depressão pós-Nordic/Celtic Noir ou de eficiência sorridente postiça dos CSIs, a obra da escritora britânica reaparece anualmente nos natais da BBC ou da ITV e até no prestigioso West End londrino. É o caso de Testemunha de Acusação.
Recentemente, descobri que o catálogo da Amazon guarda a releitura da BBC, de 2016. Não conhecia ou esquecera completamente da história, sei lá, mas o fato é que terminei a experiência transfixado. Nem tanto pela reviravolta mais mirabolante, meio prevista, mas com o roteiro de Sarah Phelps. Deixemos pra depois, porém, porque deu coceira de ver adaptações prévias do conto/peça e quero comentá-los antes.
Com nome diferente, o esqueleto da história de Witness For the Prosecution foi primeiramente publicado sob forma de conto, numa revista, em 1924. Um jovem bem-apessoado é acusado de matar uma senhora mais velha, que por ele se afeiçoara. Tudo apontava contra ele, mas ele possuía álibi: à hora do assassinato estava com sua enigmática esposa austríaca. Isso, porém poderia não pesar muito no júri, porque o testemunho duma esposa amantíssima pareceria parcial demais, e, além disso, ela era estrangeira.
Esse é realmente o problema social da obra; notem que Christie sutilmente criou personagem austríaca, não alemã, mas, que no fundo seria percebida como tudo igual. Quase um século mais tarde, o roteiro BBCiano de Phelps não deixou isso escapar. Pros esquecidos da História: em 1924 os britânicos odiavam qualquer coisa “alemã” mais do que nunca, por causa de Primeira Guerra.   
Histórias de detetives são do tipo que quanto menos se comentar a trama melhor. Suficiente dizer que no conto a reviravolta coincide cem por cento com o sombrio final.
A própria Christie adaptou a trama pro teatro. Witness For the Prosecution estreou em 1953 e é estruturalmente bem tradicional, um drama de tribunal, mas totalmente drawing room mesmo. Agora a esposa era alemã (imagine o ódio aos alemães após outra guerra), tem pontadinha contra a Alemanha Oriental comunista, o advogado de defesa é um Sir e o final foi reconstruído a fim de existir certa sensação de retribuição moral. É menos sombrio e bem mais melodramático.
A primeira versão pra cine veio em 1957, sob a direção do incensado Billy Wilder, famoso por clássicos como Quanto Mais Quente Melhor, Crepúsculo dos Deuses e Se Meu Apartamento Falasse, dentre tantos outros. A estrutura da peça é preservada inclusive em diálogos inteiros, mas devido a seu pendor por comédia, Wilder insere (hoje) irritante doença cardíaca no advogado de defesa. O alívio cômico da película é Sir Wilfrid Robarts driblando e brigando com sua enfermeira particular. Muito infantil ver isso em 2019; o filme ficou pra trás. Mas é engraçado ver que nos 50’s, um boy magia podia ser interpretado por ator quarentão. No caso, Tyrone Power, aliás, em seu último papel. Tá tudo ultrapassado, mas se você quiser ver Marlene Dietrich fazendo jus a sua fama de mulher de gelo, se jogue, mas não antes de ver a versão-BBC, senão a reviravolta perde a força.
Em 1982, a ianque CBS produziu e exibiu remake do filme de Wilder, com nobre elenco britânico. Sir Ralph Richardson (também um de seus últimos filmes), Deborah Kerr, Donald Plesance (o Dr. Loomis, de Halloween protagonizam praticamente a versão colorizada do filme de 1957. Embora um tiquinho minimizada, a pantomina da doença, de esconder charutos na bengala e colocar brandy na frasqueira do achocolatado está tudo lá. Bem burocrática, especialmente porque vi depois da versão de 2016. Mas, pra fãs de certos atores, vale. 

Nas festividades natalinas de 2016, a BBC exibiu os dois capítulos da mais recente vinda de Testemunha de Acusação. A Amazon fundiu a dupla num arquivo só, por isso consta na seção de filmes de seu catálogo. São quase 2 horas de duração só, então foi bom terem transformado em unitário.
Após a nevasca Nordic/Celtic Noir , a produção inteligente de crime dramas não poderia ser a mesma, vide River (tem na Netflix) e Happy Valley. Assim, Sarah Phelps urdiu uma Agatha Christie Noir. O roteiro criou uma coleção de gente miserável, num mundo onde nem sempre a justiça se processa da forma idealizada. Um dos únicos elementos pegos das versões fílmicas foi a doença do advogado de defesa, que agora não é um Sir. É modesto advogadozinho de porta de cadeia, com os pulmões detonados por gases das trincheiras da Primeira Guerra. Chacoalhado e sem fôlego por acessos de tosse furiosos, Toby Jones não deixa pedra sobre pedra no papel.
Visualmente, Testemunha de Acusação é dividida em antes e depois da primeira (e maior e de tirar o fôlego) reviravolta. A maior parte do telefilme é em tons ocres, em ambientes fechados e à noite. Até o fog londrino é sujo e amarronzado. Depois da plot twist, as imagens se amenizam e irradiam clareza, transparência. Mas, daí, Phelps faz grande maldade: não só retoma, mas aprofunda a lugubridade do final original. Apesar da luminosidade e “limpeza” das imagens nem tudo está bem sob o sol. É simplesmente arrasante, porque (falsamente) começa como história de detetive qualquer, pra desabar como drama humano de estilhaçar o coração.
Nem dê moral pros anteriores, Testemunha de Acusação é a de Sarah Phelps. 

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