quarta-feira, 1 de maio de 2019

CONTANDO A VIDA 271


BOLSONARISMO CULTURAL.
José Carlos Sebe Bom Meihy

Sem exagero, quase me candidatei a novos stents quando fui apontado por um “amigo” como “agente propagador do marxismo cultural”. Logo eu, perguntei-me ante a afirmativa surpreendente. Como tenho feito recentemente, não dei asas às respostas imediatas que voariam fáceis para picos defensivos. Calado, contudo, nutri certeza desafiadora de respostas, pois, afinal que motivo teria o “interlocutor”? Não me foi difícil desbastar as razões que motivaram o esbravejante “colega”. Sou, com muito orgulho, profissional da História defendida como disciplina curricular efetiva; fui professor da Universidade de São Paulo, onde passei 50 anos estudando, ministrando cursos, pesquisando (e basta citar a USP para irritar incultos); fiz e faço trabalhos com analfabetos e desterrados; apoio o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra e dos Sem Teto; defendo as cotas nas universidades. Não bastasse, por anos acompanho as levas de brasileiros que, em plena força produtiva, deixam o país e, nesse projeto de história pública tenho também lidado com mulheres e homens que praticam a prostituição como forma de trabalho no exterior (fato que, em conjunto, acaba por comprometer a imagem do Brasil como paraíso sexual). Junte-se a isso a luta pelo acesso amplo, livre, sem discriminação, ao conhecimento em escolas públicas, gratuitas e de qualidade. Feito o elenco dessas minhas devoções, percebo que me enquadro confortavelmente no esquema rejeitado pelo atual governo federal. Então, segundo eles, sou “agende propagador do marxismo cultural”. Sou? E daí?
Devo dizer que li há tempo Olavo de Carvalho, e agora vendo sua proeminência, me surpreendo com a notoriedade de alguém que subsistindo fora do ambiente universitário acumulou argumentos que mesmo articulados de maneira atabalhoada viraram armas contra o saber formal, edificado por séculos de avanços cumulativos. Sem muito esforço, devo reconhecer que o olavismo cresceu exatamente por não ter sido levado em consideração pelo pensamento crítico que, ironicamente, agora virou alvo de suas colagens discriminatórias e “excludentistas”. Num esforço quase que de remissão pelo silêncio intelectual, nota-se naquele franco-atirador dois tipos que se fundem em um mesmo ideólogo. Uma face da moeda olavista tende a aproximá-lo da figura de “pensador independente”, autônomo, capaz de municiar “emergentes politicólogos” e assim propor regras que não precisam de fundamentos embasados. O outro lado, porém, o percebe como psicopata, maluco, mal formado, e exatamente por isso influenciador de discípulos desprovidos de capacitações mínimas. Breve esforço de entendimento leva reconhecer na lavra do proponente – em particular pelos cursos (pagos) via internet – duas atitudes estratégicas: ao escrever, Olavo de Carvalho obedece a regras mais moderadas, típicas de quem sabe que o código grafado é persistente e passível de exames. Ao tuitar, porém, assume papel esquizofrênico, vomita palavrões, artifício muito apreciado por descontentes que se constroem nos erros dos governos anteriores, agora mostrados como a boca do inferno. É aí que entra o alentado brado contra a corrupção. Numa sociedade de massa e insatisfeita, a chave olavista abriu portas para a vingança do conservadorismo patriarcal, machista, excludente, atrasado. A corrupção – e o combate a ela como emblema de uma virada histórica – virou palavra de toque: seu combate tudo justificaria, mesmo calamidades.  
Assumindo-se conservador, o programa do atual presidente vai galopando e as patas ligeiras de seus ministérios vão fazendo estrada. Custe o que custar, mesmo que seja propagar absurdos comportamentais, tudo vale para empanar os avanços anteriores como as conquistas inequívocas da população pobre – basta, por exemplo, lembrar que desde o Plano Real (1994), a pobreza caiu 31,9% sob FHC, e no período do ex-presidente Lula, até 2010, houve queda de 50,64%. Mas isto não interessa a quantos vêm a presença de pobres nas universidades, em melhores patamares de consumo e até em aeroportos. É exatamente aí que entra a questão do marxismo cultural. Teriam sido os professores, artistas e o pessoal formador de opinião os responsáveis pelo reconhecimento daqueles avanços? E isso teria a ver com que o que Olavo de Carvalho chama de “doutrinação nas escolas”? Pelo sim ou pelo não, aí estão as respostas do governo: cerceamento do acesso às artes bloqueadas pela censura e cortes de verbas; ao invés de motivar direito às escolas públicas e à elevação do padrão universitário, filtrar acesso elegendo inclusive áreas práticas e de rendimento econômico imediato; em vez de motivar o ingresso de minorias nos quadros culturais, exortá-los como marginais, e no lugar propor enquadramentos familiares que não mais respondem às configurações modernas. E o meio ambiente que virou ameaça internacional?
Mas há algo que insurge e que, em termos conceituais, não pode ficar de fora de qualquer juízo, por mediano que seja: no lugar do aludido marxismo cultural estamos tendo que engolir um bolsonarismo cultural. E como é pobre! E como é redutor!! E como é desprovido de belezas e, sobretudo de direitos!!! Por irônico que pareça, há lógica no caos advogado pelos discípulos olavistas, basta ver os pronunciamentos do presidente para concordar com ele, precisamos aprender a ler e escrever (e falar). Ele nos dá exemplo da necessidade de instruir-se adequadamente e a fazer conta (o Ministro Guedes que o diga e explique a diferença entre 3 trilhões e 800 milhões). E até onde irá o bolsonarismo cultural? A pergunta fatal que se faz remete às saídas: temos alguma? Quem se atreve a responder? Será que o vice-presidente ajudará achar atalhos? Tomara que a marchinha triunfante do carnaval de 1950, vibrada na voz de Blecaute, refaça a ordem dada por um general para derrubar uma cerca que atrapalhava o andamento da população “Mourão, Mourão, catuca por baixo que ele cai”. Mourão, Mourão, veja que o Olavo de Carvalho não gosta de militares, portanto “catuca por baixo que ele cai”.

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