quarta-feira, 16 de setembro de 2015

CONTANDO A VIDA 123

Nosso historiador-cronista foi palestrar em Portugal e, como eu, adora puxar um papo com nativos em transportes públicos. Numa dessas conversas ele aprendeu qual o papel dos 3 Fs pra modernização de Portugal. 

PORTUGAL MODERNO: razões dos três “éfes”

José Carlos Sebe Bom Meihy

Calma, explico-me. Estou em Portugal e muito surpreso. Gosto imenso de Lisboa que, afinal, por anos virou meu ponto de referência, porta de entrada da Europa. Pude até acompanhar com certa naturalidade a evolução da cidade e assim contemplei as transformações que afinal, propunham a capital portuguesa como metrópole moderna, dotada de excelentes hotéis, táxis das grandes marcas, restaurantes da melhor qualidade. De tanto frequentar Lisboa, passei a ver a cultura lusitana por aquele ângulo. Errei. Desta feita, convidado a falar no Porto e em Melgaço, bem ao norte, já na fronteira com a Espanha, pude conviver com espaços tradicionais. Em breves passeios, sempre nos intervalos de conferências, ia pelo interior. Visitei Braga, Guimarães e, sobretudo fiz um passeio exuberante pelo Douro, indo ao encontro do Minho. Em uma das mais interessantes aventuras, no entanto, pude fazer o trajeto regular de Lisboa ao Porto de trem. Isso favoreceu mudanças na percepção da vida por aqui. Coincidentemente, pegando o “comboio” na Estação de Santa Apolônia, cheguei na magnífica São Bento, uma das mais bonitas do mundo, no Porto. Não bastasse a paisagem passando, por exemplo, por Coimbra, pude usufruir da companhia de uma senhora de idade avançada. E foi uma conversa só, recheada de observações sobre a história recente da “terrinha”. Antes de dissertar sobre os temas filtrados ao longo das quase três horas de convívio, vale dizer que a senhorinha quebrou o estereótipo que eu tinha montado sobre as portuguesas. Dizer que ela vestia uma blusa vermelha decotada, deixa de ser detalhe, pois seria impossível imaginar tal ousadia anos atrás. E o batom vermelho? E os anéis enormes? E as caras e bocas?...
Confesso que a combinação de situações inusitadas e agradáveis justificava minha alegria quase infantil em viajar Portugal adentro. Não bastasse tudo isso, pude ainda conversar com a adorável senhora sobre os fatores que causaram as mudanças. Ela era anti-salazarista ferrenha. Sei que, exatamente pelas razões explicitadas, eu deveria esperar isso, mas tudo funcionava além do previsto. Foi quando de maneira entusiasmada a tal senhora explicou como se deu a mutação do ranço tradicional lusitano. E foi, paradoxalmente, pela manipulação da cultura oficial, debaixo do salazarismo. Com perfeita paciência ela ia dizendo que a máquina estatal daquele então, a um tempo reforçava velhas práticas – como o comportamento convencional do uso do preto como cor do luto mantido por cinco anos – e propunha outras aparentemente contraditórias. Foi nessa altura que ela explicou “a força dos três éfes”. Ao enunciar isso o rumo do assunto ganhava o fértil terreno da curiosidade, pois, afinal, o que significariam os três éfes? E maliciosamente ela foi explicando: “F” de fado; “F” de futebol e “F” de Fátima.
Amália Rodrigues, a grande dama do fado, fora incentivada pelo ditador que colocou à disposição do sucesso da “nova” canção portuguesa toda a máquina do estado. Criava-se assim uma modalidade musical apaixonante que visaria revelar a especificidade da alma portuguesa. O futebol, em coerência com os processos eugênicos, daria dimensão à organização esportiva motivada pelo estado que, por sua vez, estaria demonstrando a política de uso do corpo em uma modalidade que arrebataria multidões. E o adorado jogador Euzébio seria a estrela. A mais surpreendente qualificação dos tais “três éfes”, contudo, veio por meio da revelação do significado da cultura à Nossa Senhora de Fátima”. Por lógico, Portugal continuaria religioso, católico, apostólico e romano, mas a modernização do culto a Nossa Senhora se renovaria em função do culto à Fátima. Foi assim que um processo de mudanças na sensibilidade cristã católica se mostrou ágil. Em primeiro lugar, foi valorizada a devoção de três aldeões, portugueses é claro, e a proposta da revelação de três mistérios dava espaço à curiosidade progressiva de um grupo de fieis que cultivação a devoção. Sabe como a conversa foi finalizada? Dizendo que com ou sem Salazar o maior feito português foi ter chegado ao Brasil e que a grande benção de Portugal foi ter transmitido a nós os três éfes: fado, futebol e a devoção àquela Nossa Senhora. Concluí que ela tinha razão...

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