segunda-feira, 17 de julho de 2017

CAIXA DE MÚSICA 274 (ALBINA)

Hermeto Pascoal: A MPB "precisa voltar a jogar bola"


por Jotabê Medeiros e Pedro Alexandre Sanches — publicado 09/07/2017 00h30

Com 81 anos de criatividade, o instrumentista-inventor lamenta o comercialismo de Tom Jobim, Gilberto Gil e Fagner

Em tom de brincadeira, mas com um leve fundo de verdade, o albino Hermeto Pascoal reclama de ter de trabalhar demais no dia de seu 81o aniversário. Nesse 22 de junho, o alagoano de Lagoa da Canoa que ganhou o mundo como instrumentista-inventor de jazz (ou de música universal, na denominação que prefere) concede entrevista a CartaCapital antes de fazer show paulistano no Bourbon Street.

Sem demonstrar cansaço físico nem menos ainda mental, prepara-se para lançar, pela primeira vez, um registro em disco com uma banda de jazz, Hermeto Pascoal e Big Band, pela Natura Musical.

Numa conversa concisa de menos de uma hora num hotel paulistano, Hermeto fala da condição de albino que não enxerga muito bem, como o classificou um dos compositores baianos um pouco mais jovens com quem guarda relação de afeto e de alguma competitividade.

Descreve como enxerga a situação política de “mundo virado” dos dias atuais, mesmo após ensaiar se esquivar do tema, afirmando que sua única política é a música, com o forró como matriz. Fala da teimosia da lenda brasileira Tom Jobim, menor que a de Hermeto, e defende a lenda norte-americana Miles Davis, que lhe teria surrupiado as composições Selim, Nem um Talvez e Igrejinha (essa sob o título Little Church), em 1971. 

CartaCapital: Você conheceu músicos albinos pelo mundo afora?

Hermeto Pascoal: Não, nenhum. Conheci o Sivuca, né? Quem quiser ver muito albino no Brasil tem que ir a Caruaru. Na Rua Preta 90% são albinos. Quiseram criar uma coisa meio preconceituosa, como se o albino tivesse sofrimento só porque é albino.

Para ser feliz e para sofrer não tem cor. Meu corpo ser assim para mim é uma dádiva também. Meu carma na Terra que Deus me deu é ser assim, e estar falando com vocês agora, com meus 81 anos, que é pouco. Eu acho, modéstia à parte, que pessoas como eu, que fazem muita coisa aqui, deveriam viver muito. O ser humano não devia viver menos de 200 anos.

Muitos, com 70 anos, já começam a ficar debilitados. O cara parece que já começa a pagar os pecados porque fez uma coisa linda pelo mundo. Isso acontece com religiosos, com todo o mundo. Já falei com Deus, ele me disse: “Olha, antes de você vir para cá já vou garantir, só não posso te dar jeito agora porque o teu carrinho tem pouco tempo aí...” “Mais 50 anos?” “Não, 40.”

CC: Como é Deus, Hermeto? É albino?

HP: Deus é tão maravilhoso que ele é como a gente imagina. É mentira que Deus é uma fisionomia só. Existe a cor, existe a diferenciação de pessoas. Mas ele diz logo: chamem vocês aí de diferente, mas o meu diferente é semelhante, é a semelhança.

Se a gente vivesse 200 anos, ia dar tempo até para acertar o errado de tudo. Ou quem não acertasse ia pegar mais anos de carga, ia sofrer mais e envelhecer também. Essa é a vida.

CC: Nos anos 1960, você foi tocar para a Rhodia, e dizem que não quiseram que aparecesse junto aos outros artistas por causa da sua aparência, por ser albino.

HP: Foi, foi. O rapaz que era presidente da Rhodia hoje já está lá onde Deus quer, não vou dizer o nome dele porque ninguém conhece, não adianta. Estava lá tocando com Geraldo Vandré, com o Trio Novo. O Quarteto Novo nem estava formado.

O pianista Cido Bianchi é que trabalhava na Rhodia e convidou essa turma, Airto Moreira, e eu fui convidado também. Mas, quando o rapaz me viu, disse que eu era feio, destoante para o desfile. Para resumir, eu toquei e ele acabou consentindo. Eu vestia as roupas e esse cara começou a se agradar do meu jeito.

Eu tinha o cabelo compridão, chego na Rhodia, vem convite para eu ser o quê? Modelo da Rhodia, meu amigo. O que você diz disso? Aí já notei que veio o lado “abichaiado” (risos). Abichaiado, que eu falo, não estou criticando os bichas, não, sabe? Eu só não dou, mas eu tenho um pouquinho também de bicha.

Veio ele pessoalmente e me pediu desculpas pelos mal-entendidos. Para ele era um mal-entendido. Aí eu digo: “Não, que é isso? Eu me amo. Eu me amo, eu me amo, não adianta me falarem nada”. Claro que não aceitei, eu não tinha tempo, estava na fase jovem, na fase de estudar e tocar mais, já com meus filhos e tudo. 

CC: Contam que nos Estados Unidos começou a tocar Tom Jobim no som ambiente, Garota de Ipanema, e Tom falou para você que não aguentava mais ouvir Garota de Ipanema. É verdade?

HP: É. Eu fiquei surpreso, porque ele estava no auge. A bossa nova estava no auge. Para tocar em elevador é porque a música fez sucesso. Eu ia subindo no elevador com ele, fui para tocar uma flauta baixo no disco do Tom.

Quando vejo ele tira aquele chapéu dele, nervoso, nervoso mesmo. A intenção que ele tinha da bossa nova era de que ela fosse uma música num nível de estar tocando nos teatros. Mas aí os culpados maiores são os parceiros dele, não era ele.

Tom falou no elevador, para uma das pessoas que sentiam a música, que era eu: “Eu queria fazer um som parecido como aquele do Quarteto Novo”. Ainda bem que o elevador demorou, eu gostei, pude dizer assim para ele: “Você mora nos Estados Unidos.

Airto Moreira, Flora Purime e Hermeto, exilados nos EUA (Foto: Hulton Arhive/Getty Images)

Uma experiência que tenho, quando saio do Brasil, é que, se eu demorar dois meses fora, já começo a sentir falta. Agora, Tom, quando a gente fala Brasil, a gente fala no povo”. Ele queria evoluir mais, como eu fiz com o forró. Forró não é um ritmo só. Forró tem variedades. O forró que nós falamos é no sentido de chamar uma pessoa para a festa, para a farra. Mas aí criaram um estilo de música e botaram esse nome de forró.

É bonito o nome, o estilo, mas que não seja uma coisa só. Por exemplo, eu fiz um disco de forró, já faz um tempo, vai ser lançado logo, logo. Você vai escutar meu disco de forró, tem chorinho, maracatu, frevo, tem de tudo, porque tudo é forró. Jazz, clássico, todos os estilos eu toco, sem preconceito nenhum.

É uma mistura que eu chamo de música universal. No comecinho, eu já comecei a incendiar o forró com a flauta, com Edu Lobo, no Ponteio (do Festival da TV Record de 1967). O Edu não fez música pronta, ele fez uma música, uma letra bonita, e nós ganhamos o festival, mostrando sem palavras, na prática. Para o público não precisa mostrar nada, o público está aberto. O público é o deus da música. 

CC: Você abordou levemente a questão da morte, de viver 200 anos. Chegou a tocar com Belchior?

HP: Não. Tive um convite uma vez. Me ligaram, tinha uma turma do Ceará que queria falar comigo. Era uma turma nova, ninguém tinha nome ainda. Marcaram, foram. Aí foi que conheci o Fagner, o Belchior.

E para que eles foram lá? Você vê o que é a meninada, né? Foram lá para a gente fazer uma onda, competir, como se fosse um tipo de competição, claro que sadia, musical, com os baianos, com a onda que estava dos baianos. Eu nunca acho que música é moda. A música, para mim, está em todas as modas, em todos os contextos.

Eu digo: “Não, eu agradeço muito a vocês”. É aquela história, quando você convida uma pessoa para fazer uma coisa, ela tem o direito de querer ou não, né? E tem que ser sincera também. Ficamos amigos, eu não quis porque estava com essa ideia do meu grupo, que é o que estou fazendo hoje.

Eles aí continuaram, e tudo bem e, quando foi daqui a uns tempos, o Fagner me convidou para fazer os arranjos do disco com nome Orós (1977), antológico. O difícil do músico é segurar a qualidade da música.

Não é que ele não segurou, é que ele ficou mais comercial. Não estou criticando, gente, estou sendo amoroso, estou sendo de pai para filho. Os produtores induzem, a coisa que eu tinha mais medo era quando eu via o produtor se aproximando de mim.

Tinha produtor que dizia que eu podia, em 15 dias, ter o grupo mais famoso do Brasil. “Só que tem umas coisinhas que eu queria te pedir, Hermeto. A roupa, esse jeito do grupo se vestir... E a música, para você maneirar um pouquinho, tocar uma música mais simples.” Como quem diz “toca brega”, né?

Quando o cara fala isso para mim ele está praticamente ofendendo a minha mãe. Não adianta, ninguém tirou e ninguém tira a minha maneira, o meu ser. Eu não premedito, eu sinto. E sou 100% intuitivo.

CC: Com 8 anos, quando começou a tocar, você já era assim?

HP: Com 8 anos. Quando saí de casa, no bom sentido, quando fui embora para o Recife, com 14 anos, muita gente pensa que minha mãe e meu pai ficaram chorando. Mas eles confiavam naquela coisa espiritual, lá do interior.

Mamãe dizia: “Meu filho parece um homem”. Assim mesmo. Sempre fui brincalhão, aí, quando cresci, ela dizia, com seus 86 pra 87 já: “Mas, meu filho, nunca vi você ser homem” (risos). Eu, para brincar com ela, digo: “Mãe, a senhora não tem os seus netinhos já? Como a senhora diz que eu não sou homem?” “Não, meu filho, eu estou dizendo isso porque você brinca muito, desde quando era pequenininho.”

Eu não sinto a diferença da minha idade. Não sinto, não é porque não quero, é porque não sinto mesmo. Minha avó dizia: “Meu filho, os dias são iguais perante Deus”. Como se Deus cometesse uma gafe dessas.

E eu, pequenininho, já sorria, já era “ironiquinho”. Se eu souber como vai ser meu show hoje, para mim, não é novidade. Nem vou. Quero viver o agora, o hoje, meu amanhã é hoje, sempre. Se eu morrer, vou morrer hoje. No dia que eu morrer é hoje.

CC: Você já ouviu Hermeto no elevador? Ou no rádio, no táxi?

HP: Não, porque a imprensa não tem gabarito para isso, não tem alcance. Eu não estou ofendendo a imprensa, estou sendo sincero. A imprensa devia se sentir envergonhada, como é que eu loto teatro mais do que muita gente?

Já estive em teatro com o meu amigão Gilberto Gil assistindo ao meu show, de eu chegar e Gil sentado, e eu sabia que ele tinha um show no mesmo dia.

Estou lá tocando, olho, vejo o Gil, ele já sabe que eu não enxergo, né? “Ih, rapaz, você aqui?” Ele disse: “Não tinha ninguém lá no meu, tinha pouca gente, não teve o show, vim assistir ao seu”. Olha que humildade, que pessoa maravilhosa.

Não falei na imprensa generalizando, falei naqueles que sabem muito bem o que não fazem para a música. A carapuça que caia.

CC: Você falou que não enxerga, mas enxergou o Gil. Quanto enxerga ou não?

HP: Não, eu enxergo, eu enxergo pouquinho. O Gil estava perto. O Gil é muito musical. Por isso eu não perdoo os músicos que têm a musicalidade e não exploram. Rapaz, o Gil, no tempo da Record, você precisava ver o Gil tocar violão.

Depois eles formaram uma música para fazer sucesso, tudo bem, mas que continuasse com aquele nível. Gil é um músico maravilhoso. Só que na prática é igual a um grande time de futebol que não está jogando bola. Precisa voltar a jogar bola.

Com o mestre paraibano Jackson do Pandeiro (Foto: Facebook/Hermeto Pascoal)

CC: Quando Caetano fala de “hermetismos pascoais”, ou “o albino Hermeto não enxerga mesmo muito bem”, ele se refere à sua música como hermética, como uma música difícil.

HP: Genial, é outro poeta maravilhoso. O Gil e o Caetano, eles representam demais. São os baianos. O Sivuca até dizia para mim: “A Bahia é a África brasileira”. Ele achava isso. 

CC: A bossa nova tirou a sanfona da música brasileira. Portanto, tirou o forró?

HP: É, para você ver como é que pode... Você acha que um Tom Jobim ia ter uma ideia dessa, um genial músico que era o Tom Jobim, para achar que uma sanfona não pode tocar qualquer música?

Não digo levado, ele foi educado pelos produtores, que queriam fazer as coisas mais comerciais. Foram eles que levaram o Tom a ser educado. O que tinha ao redor, para ele se firmar cada vez mais, não estava à altura dele. Ele não era assim como o Hermeto, teimoso. Tom era mais educado do que eu. Por isso ele cedeu.

CC: O que está enxergando da atual situação política do Brasil. Já tinha visto, na sua vida, um período como este?

HP: Não, com 81 anos eu nunca vi falar. E eu me lembro que alcancei o tempo da ditadura. Era o tempo que eu estava assim num lugar, por exemplo, tocando na Argentina, para ir pro teatro tinha que passar pelos lugares com mandado. Como aqui no Brasil. Aquela época era ruim, coitados dos caras que morreram, que mataram.

Aí não vou nesse assunto, porque a minha política, digo sempre, é a música. Não me meto em política, mas eu sou um cidadão também. O que eu sinto é que o mundo está virado, cara, não é só aqui, não. É no mundo inteiro. Não é normal o Brasil ser esse país que é, com essa beleza, ser um dos países mais duros do mundo.

Quem guarda dinheiro, para mim, não demora, demora, mas vai ser guardado. Dinheiro é uma doença. Como é que o cara é tão bom, estuda, se forma, e guarda bilhões, sabendo que não vai viver 100 anos? Se fosse pra gastar, mas ele nem vai poder gastar. Mas eu achei, mesmo assim, que está melhorando, pelo menos aparentemente.

Estão descobrindo os nomes. Só que, quando descobre o nome de uma pessoa, aquele que descobre também vai depois. Eu acho que ele fez isso exatamente pra se encontrar depois, “pode deixar que eu estou indo também”. Porque todo mundo sabe o que fez. 

CC: Miles Davis nunca deu o crédito de Igrejinha para você, ou deu? Airto Moreira falou que era sua.

HP: Houve uma onda lá... Airto falou, mas eu não falei, eu não confirmei. É só pedir as provas para o Airto, pede para ver se ele dá as provas. Eu defendo o Miles, porque conheci pessoalmente. Miles era rico, não precisa de dinheiro.

Sabe o que eu fiz para acabar com a festa? Eu tinha umas 4 mil músicas, pedi para dizer para o advogado: “Olha, essas músicas eu tenho, se Miles Davis quiser... Doutor, não é por causa de duas músicas. Se eu, dono das músicas, não estou brigando, quem quer dinheiro? Eu não quero”.

CC: Herbie Hancock e Wayne Shorter entraram com uma ação.

HP: Sim, mas eu não pedi. Eles tinham raiva do Miles, sabe por quê? Ele gravou uma música popular mexicana e botou no nome dele. Era um cara tão desligado, assim como eu, a gente que é músico de verdade não liga pra dinheiro.

Eles queriam fazer uma onda, como já sentiram que eu estava sendo muito forte nos Estados Unidos. Tanto é que, agora, vocês têm que me chamar de doutor. Como brasileiro, ganhar um prêmio desses nos Estados Unidos, não é qualquer um.

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