quarta-feira, 22 de junho de 2016

CONTANDO A VIDA 151

Ao invés das sábias palavras de nosso historiador-cronista Josè Carlos Sebe Bom Meihy, hoje teremos uma matéria da Revista da Cultura da qual participa nosso autor, devido seu livro Prostituição à Brasileira ter instantaneamente se tornado clássico no assunto. Poderoso! 

Capa de Invisibilidade – A prostituição no Brasil
Mesmo com a constante luta contra o estigma, o preconceito e a discriminação dos trabalhadores do sexo,

por que ainda é tão difícil para nossa sociedade aceitar a prostituição como um trabalho?
Por Clariana Zanutto – Fotos Laura de Avelar Fonseca – Revista da Cultura
Segundo a Classicação Brasileira de Ocupações, disponível no Ministério do Trabalho e Emprego, o título Profissional do sexo, sob o número 5198-05, abrange as seguintes categorias: “Garota de programa, Garoto de programa, Meretriz, Messalina, Michê, Mulher da vida, Prostituta, Trabalhador do sexo”. Já a descrição sumária de suas funções engloba atividades como: “Buscam programas sexuais; atendem e acompanham clientes; participam em ações educativas no campo da sexualidade”. As condições de atuação, ali descritas são: “Trabalham por conta própria, em locais diversos e horários irregulares. No exercício de algumas das atividades, podem estar expostos a intempéries e a discriminação social. Há ainda riscos de contágios de DST, e maus-tratos, violência de rua e morte”.


Prostituição


Mesmo após o reconhecimento, em 2002, como uma das 600 ocupações brasileiras – quando exercida por maiores de 18 anos –, o profissional do sexo continua sofrendo estigmas, preconceitos, vulnerabilidades e discriminações para conseguir trabalhar e ter seus direitos, além de um nó na cabeça quando se trata das nossas leis. Um exemplo disso é que o oferecimento de serviços sexuais não é ilegal no Brasil, mas ser proprietário ou gerente de local onde se pratica o sexo comercial e contratar pessoas para atuar nesse ramo ainda é considerado crime, punível com prisão.
É por isso que falar aqui no Brasil que a prostituição é uma das profissões mais antigas do mundo, como sempre se ouviu por aí, “é um dizer vazio, defensivo e rasteiro”, segundo José Carlos Sebe Bom Meihy, historiador e pesquisador da Universidade do Grande Rio e da USP e autor do livro Prostituição à brasileira. Para ele, “até hoje, são poucos os grupos sociais que acatam a prostituição como profissão regulamentada ou atividade comercial legitimada. Não deixa, contudo, de ser irônico – ou contraditório – taxá-la como ‘profissão’ exatamente em um momento em que se luta pela sua regulamentação”.
Aliás, a regulamentação da prostituição por aqui é uma questão antiga. Alguns projetos de lei, como os dos deputados federais Fernando Gabeira (em 2003) e Eduardo Valverde (em 2004) acabaram não sendo aprovados. Em 2012, o deputado federal Jean Wyllys protocolou o projeto de lei (PL) 4.211/2012, que atualmente tramita na Câmara e conhecido como PL Gabriela Leite. Gabriela era prostituta e fundou a Rede Brasileira de Prostitutas – formada hoje por mais de 30 organizações de classe – e a ONG Davida – Prostituição, Direitos Civis e Saúde, instituição que defende os profissionais do sexo.
A proposta do projeto é de “Regulamentar a atividade dos profissionais do sexo, cujo exercício remonta à antiguidade e que sujeita a injustiças e negação de direitos os profissionais, cuja existência nunca deixou de ser fomentada pela própria sociedade que a condena por um moralismo superficial causador de marginalização de segmento numeroso da sociedade”, diz trecho do PL disponível na íntegra no site do deputado federal Jean Wyllys.

PROTAGONISTAS

Ex-prostituta, militante desde a ditadura militar, amiga de Gabriela por muitos anos e hoje à frente do Grupo de Mulheres Prostitutas do Estado do Pará (Gempac), Lourdes Barreto, 73 anos, simboliza conquistas marcantes das mulheres marginalizadas de Belém e do Brasil. Com quase 50 anos de trabalho dentro do mundo da prostituição – e mais de 30 na batalha a favor da prevenção da Aids –, ela afirma que sempre se viu como uma trabalhadora sexual. “Sempre encarei como um trabalho, nunca como outra coisa. Nunca me vi como uma pecadora ou uma criminosa fazendo alguma coisa errada.”
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Aos 15 anos, depois de sofrer violência sexual dentro de casa, deixou a residência e se apoiou no mundo da prostituição, um caminho que cursou sempre com muita dignidade. “Até tive oportunidade de trabalhar com outras coisas, mas escolhi a prostituição pelo fator da liberdade, de conhecer outros mundos, outras histórias. Nunca fui cafetina, nunca trabalhei em cabaré, sempre trabalhei para mim, para não ficar sem dinheiro. E não é qualquer mulher que tem coragem não… Tem que ter talento, determinação e muita responsabilidade!”

A história de Lola Benvenutti é bem diferente. “Eu achava poderoso ser puta. Alguém querer pagar para estar comigo me parecia surreal, me sentia desejada, necessária para a satisfação dos prazeres. Decidi criar um blog, no qual eu relatava as minhas experiências, fiz algumas fotos e coloquei um anúncio em um site.” Ex-garota de programa, autora do livro O prazer é todo nosso, colunista da revista TPM, formada em Letras na Universidade Federal de São Carlos e atualmente cursando mestrado em Educação Sexual na Universidade Estadual Paulista, Lola – codinome de Gabriela Natália da Silva, inspirado na obra Lolita, de Vladimir Nabokov (1899-1977) –, hoje com 23 anos, achava que trabalhar como prostituta era divertido. “Não me imaginava como puta pelo resto da vida; aliás, jamais gostei de rótulos. A verdade é que fui viver um fetiche que achava misterioso e extremamente atraente. Eu me divertia muito.”
Tendo que escolher entre começar seu mestrado ou continuar na profissão, Lola acabou abandonando os programas, mas não se arrepende da decisão. “A vida corrida e cansativa de uma puta paulistana me impedia de fazer o que queria. Sequer conseguia pegar um livro e ler tranquilamente, porque meu telefone nunca parava de tocar. Eu me planejei pra isso, então, estou feliz por poder me dedicar aos estudos e ter tempo pra mim e pro Gerald [Blake Lee, empresário e seu atual namorado], que apareceu quando menos esperava e com quem tenho vivido situações tão desafiadoras e instigantes quanto antes. O amor também é um desafio, mas é uma delícia. A gente muda, os desejos mudam e é isso que nos faz amadurecer.”
Histórias como as de Lourdes e Lola se encontram no Brasil e mundo afora, mas as razões para as pessoas entrarem na prostituição são múltiplas. “O processo decisório de participação em esquemas de prostituição é complexo e variado. O que não se pode mais aceitar é o tratamento convencional, atribuindo-o a culpas familiares, pobreza, violência doméstica, como se todas as prostitutas e prostitutos fossem pessoas miseráveis e desprotegidas. Não que esses casos deixem de ser numerosos, mas há também situações de pessoas que escolhem entrar nesse mundo” explica José Carlos, que atualmente está na Colômbia entrevistando brasileiras que se envolveram com narcotraficantes.
Já Lourdes cita histórias de mulheres que se casaram, mas queriam conhecer outros homens, muitas que precisavam sustentar a família, outras que não tinham o que comer, estavam grávidas e também mulheres que estavam lá porque simplesmente queriam, gostavam do que faziam e nunca quiseram sair.

A LUTA NÃO PODE PARAR

Mesmo estigmatizada, discriminada e isolada, a prostituição existe há muito tempo e deve continuar a existir. Mas por que é tão difícil para nossa sociedade aceitá-la como um trabalho respeitado? Para José Carlos, em uma ponta temos uma série de preceitos firmados em normas morais, religiosas, seletivas, e, no outro extremo, o reconhecimento dessa atividade, que se mostra ameaçada por posições hipócritas, quase sempre
ligadas à proteção da família. “É difícil para a sociedade entender a prostituição, porque esta, no comum das vezes, se impõe como risco para os chamados ‘bons costumes’.”

Lourdes segue a mesma linha de pensamento. “O problema todo é que a nossa sociedade ainda é muito preconceituosa e falso moralista, não aceita falar sobre sexualidade, fantasias sexuais, e isso tudo faz parte da vida humana. Então, em um país que ainda não acabou com o racismo, com o trabalho escravo, as pessoas sofrem violência sexual, as crianças têm que trabalhar, é muito difícil ainda, mas o que precisamos é lutar contra o estigma, o preconceito e a discriminação, para termos uma sociedade mais justa.” E complementa: “No momento em que estou trabalhando, tenho o direito de decidir se quero ir ou não com um cliente. O corpo me pertence, as minhas partes sexuais me pertencem e posso usar como um instrumento de trabalho. Mas, como em qualquer outra profissão, há mulheres que também sofrem violências, podem encontrar clientes que queiram fazer coisas à força, e é por isso que precisamos de nossos direitos”.

ORGULHO ACIMA DE TUDO

Traçando caminhos e tendo objetivos bem diferentes, mas compartilhando do mesmo princípio, Lourdes e Lola nunca se arrependeram ou tiveram vergonha da profissão. “Nunca me arrependi. Ser puta me humanizou, e me ensinou muito sobre a vida, mas é claro que não é fácil, como nada na vida”, ressalta Lola. “Nunca me importei com os comentários maldosos e odiosos das pessoas nas redes sociais, mas a indiferença da minha família, que decidiu me ignorar por um tempo, foi muito difícil.”
Algumas vivências a chatearam muito, como a de uma professora que escreveu um poema em rede social a rebaixando, ou quando riscaram seu carro com todo o tipo de xingamentos, “mas logo entendi que, se me importasse com esse tipo de coisa, seria impossível viver. Então, decidi olhar sempre para as pessoas que eram gentis comigo e que me motivavam. Deu certo e eu não me chateei mais. Passei a refletir muito mais sobre as minhas atitudes e sobre as pessoas e a não aceitar normas de conduta, certo e errado”.
Já Lourdes acredita que o conhecimento que ela passa para a frente, além de sua relação e concepção dos seres humanos e da sociedade, foram as melhores coisas que a profissão lhe deu. “A prostituição, para mim, proporcionou várias coisas boas, porque lidei com inúmeras pessoas, muitas culturas diferentes, conheci os dois lados da moeda da sociedade e acabei virando uma grande psicóloga, assistente social e educadora social.”
Para ela, o estigma e o preconceito que sofreu – e ainda sofre – é o que de pior acontece, mas isso já foi superado. “Sou um ser humano que, a cada segundo da minha vida, consegue superar muita coisa. Quando era muito nova, eu já enfrentava a sociedade, dizendo que esse era o meu trabalho, e, hoje, meus filhos e netos têm mestrado, doutorado, sou convidada para eventos e palestras. Neste Carnaval, saí em uma escola de samba aqui no Pará, no carro abre-alas, feito no formato de um cabaré, como uma ‘puta rainha’. É assim que me identifico. Já fui candidata a vereadora, mas tenho medo de entrar na política partidária e me corromper; então, prefiro só fazer política social, lidar com a questão dos direitos humanos e da
cidadania, lutando por uma sociedade mais justa, mais fraternal, com mais segurança, educação, saúde de qualidade. É essa a nossa luta!”

http://www.editoracontexto.com.br/blog/capa-de-invisibilidade-prostituicao/

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