quarta-feira, 16 de novembro de 2011

CONTANDO A VIDA 58


A proximidade do Dia da Consciência Negra vem a calhar para que pensemos em nossa negritude muitas vezes negada e também em nosso papel como influenciadores na África. Nada como este recentíssimo texto de nosso cronista-viajante – que o enviou direto de Moçambique – para iniciarmos a problematização.

O TRISTE ABRASILEIRAMENTO DA ÁFRICA

José Carlos Sebe Bom Meihy
Para Lourival dos Santos

Já se disse que a compreensão do Brasil não é para principiantes. Nossa sutil sociedade tramita entre o moderno e o arcaico, entre senis estruturas e projetos ultra-avançados, de jeito extremado e trôpego. A negação disso obscurece uma realidade injusta e de crescente vocação opressiva projetada sobre outros países. Mais: faz com que nos orgulhemos de ser “emergentes”, modernos, esquecendo-nos de que ainda abrigamos assustadores extremos mesquinhos e nos hasteamos como exemplo. Basta, contudo, olhar para os lados e perceber a devoção ao progresso desmedido segundo regras de um capitalismo que em vez de acelerar aproximações polariza diferenças. Mesmo a inegável mudança do padrão das camadas pobres se mostra pífia ante as possibilidades e isso se exacerba quando contemplamos o Brasil fora dos nossos limites territoriais. Aliás, nem questionamos a ética social dinamizadora do processo imperial que nos tenta. No correr dos dias em nossa paisagem tropical, sempre intuída por meio dos comportamentos urbanos, industriais e de mecanização da lavoura perdemos a visão de conjunto e assim esquecemo-nos do fardo colonial. Com arrogância desvalemo-nos da busca de identidade latino-americana e o mesmo ocorre com outros parceiros de processos históricos afins e muito particularmente com a África.

Sem nos apercebermos da gravidade da submissão que marcou nosso pretérito, como adoradores infantis, ajoelhamo-nos em frente a indicadores europeus ou norte-americanos. E nossos referenciais passam a ser as bolsas de valores estrangeiras e o custo do euro ou do dólar. A perpetuação desse esquema verticalizado no alinhamento norte-sul nos constrange a admitir a possibilidade de laços solidários entre países do mesmo hemisfério. É verdade que nem tudo é tão simples e linear. Temos momentos dialéticos e de crítica, mas isso quase sempre nos reduz a uma azeda percepção do mundo pobre e, não raro, os inquietos são legados aos partidos políticos condimentados de insatisfeitos e rebeldes estranhos à ordem sempre dominante. Mesmo considerando os malcontentes, o que temos é uma percepção do produto histórico como se os negros emergidos do processo escravagista fossem apenas rebeldes revoltados e excluídos em quilombos ou submissos eternizados no silêncio singular da pobreza em favelas ou guetos. Sem ver a riqueza fabulosa contida naquelas tradições, nossas percepções identificam a negritude com miséria e assim perdemos a seiva analítica capaz de nutrir outras leituras.

O Brasil atua no processo global de maneira ambígua ainda que gigantesca. É, feliz ou infelizmente, inegável nossa força modeladora em estados africanos. Absolutamente impressionante o vigor assumido por nossa presença que, alhures, se ergue como padrão desejável. Grosso modo, são três os vieses que nos fazem eleitos de preferências: o impacto econômico expresso pelas multinacionais brasileiras ligadas à construção civil, prospecção de petróleo e mineração; os cultos neo-pentencostais e a televisão. As empreiteiras, além dos lucros dilatados, demandam trânsito de funcionários que chegam a afetar as estatísticas. No aeroporto de Luanda, Angola, por exemplo, há atendimento especial para esses funcionários. Em qualquer recôndito canto de diversas sociedades africanas, os templos da Igreja Universal e congêneres repontam com número indizível de pobres que, além dos dízimos, pagam com inexplicável zelo os chamados votos de desejos. Nossas novelas, por sua vez, padronizam valores ocidentais que são assumidos como arquétipos a serem seguidos atuando em particular na juventude e na remodelagem de esquemas familiares. A piorar tudo, as motivações subjetivas que nos fazem exemplo são cruéis. Em particular nos países de língua portuguesa, o horror ao recente passado colonizador é motivo de rejeição peremptória e o contrário disto modela o Brasil como espelho a ser seguido. Nessa ordem, os demais antigos dominantes europeus são demonizados em nome de uma cultura despótica que legou a todos os estereótipos negativos da chamada raça negra. Os Estados Unidos representam o mal e mesmo o esforço de superação do tirânico comunismo não aliviou refutações. Restou-lhes mesmo o Brasil da suposta democracia racial, paraíso a ser imitado. E sem saber bem como ou com que critérios, avançamos avassaladoramente sobre uma África aflita e carente de tudo. Por lógico, resta ver alguma esperança. Não cabe negar vantagens desse processo, de forma alguma, mas, rasga-se espaço para reflexões sobre outros ângulos, que não apenas econômicos, dos contatos. Mais que nunca, estudos dessas culturas merecem ser saudados como necessários. É verdade que autores africanos como Pepetela, Mia Couto, Luadino Vieira e José Eduardo Agualusa, entre tantos outros, assumem importância multiplicadora, mas é necessário muito mais. É preciso estudar a África. Viajar para aquelas plagas é necessidade, e mais que nada é preciso que vejamos nossas responsabilidades nessa ordem e progresso.
Maputo, 3 de novembro de 2011.

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