segunda-feira, 15 de junho de 2009

SARAU


Roberto Rillo Bíscaro

Fazia bastante tempo que não lia algum romance. Devido às inúmeras obrigações que tenho acabo lendo muito mais textos teóricos ou lendo/relendo análises literárias ou extratos de livros pra trabalhar com alunos. Semana passada mesmo tive que dar uma aula sobre a poesia de Manuel Bandeira pruns jovens que prestarão vestibular, daí acabei relendo as anotações que fiz pruma mesma aula que dera há um par de anos. Além disso há as traduções que aparecem e o meu próprio trabalho de pesquisa que é centrado em textos dramatúrgicos e não em prosa.

Mas nesse fim de semana li um romance contemporâneo brasileiro que achei muito bom: A Chave de Casa, da jovem, tímida e simpaticíssima Tatiana Salem Levy.

Tatiana esteve na Biblioteca Pública Municipal aqui de Penápolis esta noite pra falar sobre seu livro e sobre literatura de modo geral. Trata-se dum programa da Secretaria Estadual de Cultura que traz escritores pras cidades inscritas no projeto. Ano passado vieram alguns e neste ano Tatiana foi a primeira a vir. Sempre calhou de eu ter aulas inadiáveis nos dias das vindas, mas neste ano sabia que teria a noite livre, então peguei o livro emprestado na Biblioteca pra poder ler e dialogar com a autora. (Quem pensa que não se pode ter uma vida culturalmente gratificante numa cidade pequena está enganado, viu?)

O romance é uma espécie de acerto de contas da narradora com diversos fantasmas de seu passado familiar e pessoal. Temos a relação da narradora com a mãe cancerosa, com o amante abusivo e com o passado judaico de seu avô que emigrara pro Brasil quando ainda jovem. Ao ser presenteada com a chave da casa do avô na Turquia, a narradora parte numa odisseia ao estrangeiro em busca de sua identidade judaica. Odisseia não é exagero posto que no final existe um trecho onde a pontuação é abolida tal qual no Ulysses, de Joyce, que trata de outra odisseia.

O teor pessoal dessa busca pela porta da terra de origem do avô se aquilata quando levamos em conta que há uma tradição dos judeus sefarditas, os quais, quando expulsos da Península Ibérica, durante a Inquisição, guardaram as chaves das casas abandonadas às pressas.

Como se trata duma narrativa que puxa os fios da memória na tentativa de (re)articular diversas identidades, não é de surpreender que a autora tenha optado por uma forma não linear de contar sua história. Ponto pra ela porque isso torna forma e tema muito mais coesos, embora essa coesão esteja dialeticamente construída a partir dum jogo de espelhos que refletem imagens ora contrastivas, ora complementares, ou , deveria dizer imagens contrastivas complementares.

Coisa que me chamou a atenção no livro foi o farto uso dos dois pontos, um dos sinais de pontuação mais "racionais", porque afinal, são explicativos, enumerativos etc. Interpretei essa abundância como manifestação textual de construção duma narrativa explicativa, que tenta recuperar e ordenar os fios soltos da memória. Comentei isso com Tatiana, que me disse que, na verdade, ela tem fixação por dois pontos. Inclusive, ela disse que nunca havia visto os dois pontos sob essa perspectiva e parece que curtiu minha intervenção.

A escrita densa e madura da diminuta Tatiana certamente a levará longe no cenário da literatura brasileira. Esse é seu romance de estreia ainda e já aponta uma nova voz feminina de peso em nossas letras. Que bom!

Um comentário:

  1. Bom, primeiro. Confesso que tenho um apreço também muito grande pelos dois pontos e pelo ponto e vírgulo. Acho que poucos autores usam e que eles trazem um charme bem legal ao texto.

    Segundo, só para acrescentar sobre a Tatiana. É interessante lembrar que este livro foi a tese de dissertação de doutorado dela. Muito legal isso. Ela arriscou fazer uma tese bem diferente, coisa pouco aceita no BRasil, e escreer um romance em vez da dissertação normal. Ficou tão bom que virou livro. E rendeu prêmios literários ainda! =)

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