segunda-feira, 27 de abril de 2009

BALEIA ACADÊMICA

Gentem, a baleia albina inspirou até crítica literária sobre um poeta do Romantismo inglês, o John Keats. Que baleia poderosa é essa???


Keats, a mortalidade e a baleia albina
Heron Moura
Não dá para não gostar do poeta inglês John Keats (1795-1821). A poesia dele exala vigor e leveza, malabarismo e forma clássica. Os poemas parecem ter sido compostos ao despertar, quando se percebe o mundo de chofre, e as sensações estão aguçadas, e ainda guardamos aquele sabor de coisas imaginadas, e o sono se mescla à vigília. Levitamos pela manhã, ao sair da cama, mas levitamos também nos poemas de Keats.Sobre esses poemas, já se disse que fizeram mais pelo imperialismo inglês do que toda a armada britânica. Ou então, mais cruelmente, que um poema de Keats vale mais do que a vida de dez velhinhas. Ele é desses autores, raros, que resumem uma literatura.Para cúmulo da sorte, era um homem simpático. O crítico americano Harold Bloom disse que ele “pode ter sido o mais são e normal de todos os grandes poetas que já existiram”, isso apesar de ter sido órfão e tuberculoso. Morreu jovem, sendo assim poupado dos erros da maturidade. Não era um fanático, não tinha um sistema ideológico fechado, nem à direita, como Eliot, nem à esquerda, como Neruda.
Era um homem livre. Shelley morreu afogado, e no seu bolso foi encontrado um livro de poemas de Keats.
Julio Cortazar escreveu um livro sobre ele. O escritor argentino diz que em Keats é possível antever aquela liberdade integral imaginada por muitos artistas, mas que é mais lamentada do que praticada. Rimbaud, por exemplo, disse que par delicatesse, j´ai perdu ma vie (por delicadeza, perdi minha vida). Nada dessa lamentação do que não pode ser fruído se encontra em Keats. Como se ele antevisse a liberdade ao sair do sono, e nela perdurasse por longas horas no decorrer do dia.
Era um homem simples, mas extremamente ambicioso na sua prática literária. Tudo o que mais desejava era estar entre os grandes poetas ingleses ao morrer.Talvez por isso, recorre muitas vezes em seus poemas ao clássico mote da fama que faz perdurar o efêmero. Tudo passa, menos a fama auferida pela beleza. Um objeto de arte é uma fruição para sempre. Como se na arte ele quisesse fazer perdurar o instante em que abre os olhos de manhã, a luz na janela, o som de pássaros lá fora, os últimos passos de uma procissão pagã vista em sonho. O poema seria não uma recomposição do pássaro e da procissão, mas da fruição do pássaro (real) e da procissão (sonhada). O seu verso mais famoso é talvez o seguinte:A thing of beauty is a joy for ever. (“um objeto de beleza é um prazer para sempre” (tradução minha).
Há muitas possibilidades de se interpretar esse verso. Eu gostaria de chamar a atenção para uma contradição entre dois termos: thing (coisa, objeto) e joy for ever (prazer, alegria para sempre).
Uma interpretação inicial nos conduz à idéia de que a beleza materializada num objeto (uma escultura, um poema) está para sempre à disposição dos contempladores, muito além da vida mortal do artista que gerou o objeto. A mortalidade gera a imortalidade. Porém, essa visão clássica da vida congelada na arte não capta toda a ambigüidade do verso. Não se trata apenas de beleza armazenada, arquivada, disponível para consulta, como a Mona Lisa exposta sorridente para uma multidão de atônitos diante da fama que atravessa o túnel do tempo. A Mona Lisa é um consolo para a nossa própria mortalidade. Mas não é a obra em si que é eterna no poema de Keats, é a sua fruição. E aí as coisas se complicam. Como pode uma fruição ser eterna? Como pode uma alegria durar mais do que um instante?
Sabemos que muitos vão ver a Mona Lisa apenas pelo desejo de se encontrar com uma eternidade, com uma relíquia que atravessa os tempos. Mas Keats visava diretamente a fruição, o estado da mente, não o encontro com o objeto.
Keats sabia que esse encontro com a beleza, esse estágio semi-consciente de percepção de uma ordem submersa no mundo, corresponde a um momento que não dura muito; talvez se desfaça logo depois de vivido, como no despertar se desfazem as imagens do sono, e restem apenas fragmentos e sensações do que era vívido e intenso.
Com toda sua alegria e força verbal, a poesia de Keats nos põe diante da mortalidade do poema, da percepção de que alinhar sons e imagens é como um filme que se vê: ninguém espera encontrar a eternidade ao entrar numa fila de cinema. O filme passa, o poema passa, a escultura passa (ou você passa pela escultura, dá no mesmo).Há uma contradição entre o objeto de arte que você pode guardar e a percepção do objeto de arte, que você não pode guardar; não pode nem mesmo reproduzir. Há os colecionadores de objetos de arte, mas não há os colecionadores de sensações de objetos de arte. Uma obra de arte pode ser imortal, mas o seu usufruto é profundamente mortal (aliás, não seria por isso que é difícil imaginar uma exposição de arte no paraíso? Os imortais contemplariam eternamente os objetos de beleza?).
Estava então Keats sendo contraditório ao afirmar a eternidade do que é essencialmente mortal? Esse “prazer para sempre” de que ele fala não é literal, é metafórico. O dia de Keats tinha 24hs, e ele não contemplava mais do que algumas horas a beleza de um poema, dele ou de qualquer outro. Aliás, como disse uma vez Drummond, até a poesia enjoa.
Não há em Keats o lamento da perda da imortalidade. Há a constatação implícita. Ele distinguia a arte convertida em artefato da arte vivida pelo contemplador. Isso me leva a fazer um paralelo um tanto livre com a biologia. Há um gene do albinismo. Há pouco apareceu nos jornais uma foto de uma baleia albina. Todo o interesse desse gene seria propagar genes do albinismo. O gene é egoísta. Mas não dá para imaginar que o gene do albinismo leve à contemplação do albinismo, e não existe o caso de pessoas (ou baleias) albinas se sacrificando por outras pessoas (ou baleias) albinas em nome de seu albinismo (o que levaria a uma multiplicação do gene). Uma coisa é o gene do albinismo, outra coisa seria um gene que identificasse o gene do albinismo. Uma baleia albina não se reconhece como albina. Uma baleia albina não tem espelho.
Um objeto de arte é apenas um objeto. O prazer que ele causa é outra coisa, de outra natureza. Talvez Keats tenha sentido o abismo que separa o objeto e a contemplação, a coisa e o espelho da coisa, mas manteve a calma, e continuou a fazer poemas e a caminhar nos campos da Inglaterra.

(Encontrado em http://www.heronmoura.com/blog/?p=69)

Nenhum comentário:

Postar um comentário