segunda-feira, 8 de agosto de 2016

CAIXA DE MÚSICA 230

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Roberto Rillo Bíscaro

As areias do tempo cobrem tudo e todos e nem é ruim que seja assim, senão correríamos o risco de estar vivendo em cavernas ainda. Coisas e pessoas têm que ser esquecidas pra que novidades prevaleçam. Como não sou afeito a filosofar, há sentido prático pra esse introito, na verdade, lado negativo do citado. Quando falo que gosto de funk, muitos torcem nariz, fazem cara de pasmo, porque associam com a corrente da Anita, Vanessa Popozuda e um caminhão mais, que desconheço.
Nem discutirei o preconceito embutido nas caras de nojo, porque me pega mais o fato de que criticam sem ter noção de que a vertente nacional é apenas uma, de várias. Em princípio, nada contra ela, até porque, mesmo que nem os jovens funkeiros nacionais ostentadores saibam, a base eletrônica pro som deles vem de meu adorado Kraftwerk (ouçam Numbers e a repetição incessante de Home Computer e depois falamos). Assim, o funk daqui e de agora não é o único e nem é “daqui”: é de Miami, do Rio, da África, da Alemanha.
Egresso dos coloridos 80’s, não deu pra ficar imune ao funk. Não ouvi diretamente clássicos mais “crus”, tipo Sly And The Family Stone ou Parliament, mas vivi o apogeu de Prince, conheci Rose Royce através da regravação de Madonna, sou da geração Nile Rodgers, um dos popificadores-mor do funk e até mesmo o INXS do qual nunca fui fã, tocou muito nas rádios com suas guitarrinhas funk de loira suicida. E quem diria que o gélido Robert Smith soltaria arrasa-quarteirão funkeado, “copiado” de Bowie? Why Can’t I Be You só pode ser descrita eficientemente assim.  
Em meados de julho, descobri lançamento muito legal de funk norte-americano, que percebi seguir linha evolutiva consequente e rica. Por isso, além de prestar atenção ao Con Brio, estudei funk através de 2 documentários, ora partilhados com vocês.

Durante a radicalização do movimento civil pelos negros, nos pantero-negristas anos 70, no front cultural despontava um coletivo que começara a fundir funk com rock e abandonara os terninhos e vestidos comportados dos artistas negros da Motown, que sonhavam em ser brancos. Em torno de George Clinton, O Parliament/Funkadelic mudava o panorama da música popular ocidental, numa alteração sentida desde a presença de guitarras funkeadas em álbuns de rock progressivo já da época, como Remember The Future, do Nektar, até esta semana, que terá algum lançamento sampleando algum artista de P-Funk (o coletivo foi se alentando tanto que gerou sub-subgênero específico).
Pra começar a conhecer essa história, o documentário Parliament-Funkadelic: One Nation Under A Groove (2005) a introduz bem-humoradamente, ainda que careça de contextualizar a moçada no painel dos anos 60/70, um pouco mais consequentemente. Clinton começou numa barbearia, tentou ser bom-moço de terninho estilo Motown, teve até um single de sucesso, mas não teve jeito. Ele nasceu mesmo pra revolucionar, então, em 68 virou hippie, passou a usar roupas doidérrimas, substâncias piradérrimas e a misturar psicodelia cheia de fuzz e reverb com funk. O resto é história e vem numa linha sucessória que passa por Prince, Talking Heads, Snoop Dogg e não daria pra citar tantos. Sem exagero, fica difícil contabilizar o quanto o Parliament-Funkadelic foi sampleado por artistas de rap e hip hop, de tudo quanto é sub-estilo. Até roqueiros empedernidos deviam ver, pra perceber que Iggy Pop e Red Hot Chili Peppers estão nessa também.
Com o nome no Hall da Fama do Rock’n’Roll, parafernália no acervo permanente do Smithsonian, Clinton tem sido fartamente chamado de revolucionário, visionário e o escambau. Em termos musicais até é, mas o documentário também mostra o que acontece quando artistas – que não detêm o controle dos meios de produção e distribuição – acreditam demais na sensação de independência que supõem ter. 
Se você quer panorama ao invés de aprofundar em um artista, compensa ver The Story Of Funk: One Nation Under a Groove (2014), da sempre competente BBC. O Reino Unido foi sacudido pelo funk, desde sempre, haja vista a eclosão do Northern Soul, então não estranha a outrora sisuda TV inglesa dedicar uma hora a contextualizar o funk como parte do movimento pelos direitos civis dos negros. O subtítulo é igual ao do anterior, porque ambos se referem ao clássico álbum do Funkadelic, de 1978.
O programa começa pela decisão de artistas como James Brown de não seguirem o padrão comportado da Motown e radicalizar na sensualidade dos trejeitos, gritos e, claro, na batida malvada que lhe rendeu o epíteto The Godfather Of Soul. Os grandes a partir dele são citados, com suas contribuições. Sly And The Family Stone por terem inventado um jeito de tocar baixo que se tornou marca d’água do funk; George Clinton e seu P-Funk psicodelizado; Earth, Wind and Fire e a popificação do subgênero.
Um dos bônus maiores do documentário é mencionar a influência que o funk teve numa onda cinematográfica nos 70’s – hoje chamada Blacksploitation/Blaxploitation – que levou a negritude orgulhosa dos grandes cabelos e roupas espalhafatosas pras telonas num festival de delícias que incluíram vampiros negros, agentes secretas fatais (Cleopatra Jones, divina, amo super!), tudo embalado pelo slap bass funkeado.
A disco music é um bocadinho demonizada como causadora da derrocada da supremacia funkista. Eita discothéque malvada que matou o prog rock e fez o Kool And The Gang adocicar sua sonoridade! Ora, ora, eles adoraram a grana que ganharam com Joanna e outras popices oitentistas depois que deixaram de fazer funk instrumental pro gueto.  

Engana-se quem pensa que isso faz parte dum passado morto há pelo menos 30 anos. Ainda há diversas bandas funk excursionando e gravando, preservando a vibe primal e falando sobre discriminação, violência urbana e igualdade, como prova de que Obamas e Olivia Popes não significam que a violência racial tenha acabado. E quando é um brasileiro que produz um álbum de música negra norte-americana? Daí, eu não podia deixar de ouvir!
O Con Brio é um septeto da área de São Francisco, que tem chamado a atenção da imprensa musical mais à alternativa, devido a suas muitas apresentações matadoras, com excursões internacionais, inclusive. Multirracial como Sly And The Family Stone e com nome em espanhol – sim, Com Brio! -, o Con Brio estreou em LP em meados de julho, produzido pelo incensado Mário Caldato Jr, o “quarto Beastie Boy”, além de já ter produzido Beck, Blur, Bjork e SeuJorge.
Desnecessário conhecer a história do funk pra desfrutar Paradise, mas um mínimo de sintonia com a tradição do subgênero permite sacar como o grupo e Caldato são expertos. Com identidade própria e brio, ouvimos de Motown à popificação do funk. Paradise abre com a faixa homônima, que funciona como intro e tem segundos que soam como se um jovem Michael Jackson cantasse no Led Zeppelin. Psicodelia guitarreira funkeira, que ressurge em You Think This Is a Game, com vocal falado e experimentação free jazzística nos metais.
Paradise tem seus momentos pop, como a dançante Eagle Eye; a sensual No Limits; e o melzinho de Honey, com seu violão e flautinha fofos, mas quem quer eletrofunk facinho, procure o Tuxedo (e isso não é desmérito). Faixas como Liftoff, ainda que acessíveis, têm aquela crueza deliciosamente cruel do funk, que faz a gente quebrar as cadeiras de tanto querer rebolar. Pausa pra dar gritos à James Brown, pera.
Em Free and Brave, o Con Brio politiza a Motown, envenenando a sonoridade bom-mocista da gravadora com guitarras pra falar sobre desigualdade racial à Martin Luther King. Vibrante, como também a antimonetarista Money. E quem curte visceralidade não resistirá aos quase 6 minutos mid-tempo de Hard Times.
Não há um só funk; não há só ostentação brasuca contemporânea. Há rica tradição e o Con Brio garante sua continuidade. Ouça no Bandcamp:

 

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