domingo, 14 de agosto de 2016

A SUPERAÇÃO DA JUDOCA RAFAELA SILVA

Rafaela Silva é a melhor do mundo
(matéria publicada em agosto de 2013, na ISTOÉ 2016)
Michel Alecrim
Na parte interna do braço direito, a judoca Rafaela Silva tatuou a seguinte frase: “Só Deus sabe quanto eu sofri e o que fiz para chegar até aqui”. Os atletas gostam de dizer que passaram o diabo para alcançar o topo – a maioria passou mesmo –, mas para Rafaela o desabafo cravado na pele não poderia ser mais apropriado. Ela cresceu na Cidade de Deus, favela na zona oeste carioca que teve sua dura realidade exposta pelo escritor Paulo Lins, e viu muita coisa ruim acontecer. Sorte que a violência da comunidade jamais chegou dentro de casa. O pai é um motorista dedicado e a mãe ganha a vida numa daquelas mercearias de periferia que vendem de tudo. Rafaela fez a tatuagem depois da desclassificação precoce nas oitavas de final dos Jogos de Londres, no ano passado, derrota especialmente dolorida porque a brasileira estava na lista de favoritas ao título. Disseram, na ocasião, que ela não tinha a frieza necessária para uma competição daquele porte. Que tinha perdido a humildade. Que jamais chegaria ao olimpo das campeãs. Nada disso era verdade. “A eliminação em Londres não me derrubou”, diz Rafaela. “Acho até que fiquei mais forte.”
No final de agosto, em um Maracanãzinho lotado, no Rio, ela se tornou, aos 21 anos, a primeira brasileira campeã mundial do judô. Apesar da espetacular ascensão, Rafaela não abandonou a CDD, sigla usada pelos moradores para se referir à favela. Afinal, é ali que moram seus amigos e parentes. Uma boa justificativa para isso é que a casa dos Silva fica a poucos metros do local onde a judoca treina. Rafaela é uma revelação do Instituto Reação, comandado pelo ex-judoca Flávio Canto, que tem um núcleo na academia Body Planet, de Jacarepaguá, próximo a um dos acessos da comunidade. A casa dela tem três quartos e foi construída pelos pais, que antes moravam de aluguel em outra parte da Cidade de Deus. Por fora, a arquitetura improvisada não difere muito das residências típicas de periferia. Para chegar ao endereço, no alto de uma ladeira, é preciso subir uma escada íngreme sem corrimão. Parte do que a lutadora conquistou pode ser vista na residência, decorada com placas e troféus amealhados por ela. Rafaela foi vice-campeã mundial adulta, em 2011, e campeã do Mundial sub-20, em 2008, entre outras glórias. Com as vitórias, vieram os patrocinadores. Com eles, algum dinheiro.
Rafaela ajudou a família a reformar parte da casa e comprar eletrodomésticos. Além de um som potente e geladeira, se deu ao luxo de adquirir uma segunda máquina de lavar. Na família há outra judoca, a irmã Raquel, 24 anos, que chegou a ser medalhista de prata no Mundial de Lisboa, em 2009. O pai delas, Luiz Carlos do Rosário Silva, 50 anos, lembra com clareza como conheceu o treinador Geraldo Bernardes, em 2000, quando Rafaela tinha 8 anos. Na época, Geraldo estava implantando o judô na academia Body Planet, que só três anos depois se tornaria parceira de Flávio Canto. “Precisava tirar minhas filhas da rua e vi que tinha sido aberto um projeto social aqui perto”, diz Rosário Silva. “Nem imaginava que ela iria um dia competir pelo Brasil.” Apesar de a família não esperar muita coisa do projeto, o técnico Geraldo percebeu de imediato que seria um desperdício não dar atenção especial às irmãs. Rafaela levou vantagem por ter começado a aprender judô mais nova, e uma gravidez aos 15 anos prejudicou a carreira de Raquel. “Vi que a Rafaela tinha a agressividade e a coordenação motora naturais para a luta”, diz o técnico, que comandou a equipe brasileira de judô nos Jogos de Sydney-2000. “Depois descobri que essas habilidades foram adquiridas na rua.”
A desenvoltura era mesmo fruto de uma infância inquieta. Rafaela jogava futebol com os meninos, pulava muro, subia em árvores e soltava pipa. Difícil era segurá-la em casa. Quando tinha 5 anos, já participava das aulas de judô do chamado Clube Escolar, um projeto da Associação de Moradores da Cidade de Deus. No lugar, não havia como aprender direito as técnicas da luta, mas as primeiras lições ajudaram a disciplinar Rafaela. “Na época, ganhei um quimono usado que era maior do que eu.” Não foi só o improviso do projeto da associação que impediu um aprimoramento maior da garota. Àquela altura, a favela era dominada por traficantes e a população vivia refém de bandidos, em constantes tiroteios. Rafaela lembra que, quando tinha guerra do tráfico, ninguém podia treinar. Os dias de terror, felizmente, ficaram para trás. Desde 2009, a comunidade conta com uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP). A violência não foi totalmente varrida dali, mas o policiamento já permite aos moradores exercerem seu direito de ir e vir.
Os avós de Rafaela foram morar na Cidade de Deus no início da década de 1960, depois que a casa em que moravam na favela da Rocinha foi condenada pela Defesa Civil. Na CDD, viram de perto o aumento da violência. . “Aqui já foi um lugar muito estigmatizado”, diz Sérgio Luiz Silva, tio da campeã mundial. “A gente precisava dar outro endereço para conseguir emprego.”
Para o técnico Geraldo Bernardes, não é à toa que tantos talentos do judô desabrochem em comunidades pobres como a Cidade de Deus de Rafaela Silva. Só o instituto de Flávio Canto, com cinco polos voltados para crianças carentes, tem três atletas na seleção principal e seis nas categorias de base. O projeto atende ao todo mil alunos. “A pessoa que já luta pelo seu espaço e pela sobrevivência acaba levando essa garra para o tatame”, diz Bernardes, considerado um segundo pai na vida da judoca.
A garota que soltava pipa nas ruas da Cidade de Deus está na seleção brasileira desde os 13 anos. Aos 15, venceu o Mundial Júnior, mesmo enfrentando atletas três anos mais velhas. Atualmente, Rafaela ocupa o segundo lugar no ranking mundial da categoria para até 57 quilos e sua faixa preta já leva o segundo dan (graduação superior). A judoca também atribui seu sucesso ao acompanhamento psicológico que recebe. Tanto que decidiu estudar psicologia – está no primeiro período do curso no Centro Universitário Celso Lisboa. “Quero ensinar às meninas mais novas o que eu aprendi”, diz. “O equilíbrio mental me ajudou muito.” Se o acompanhamento psicológico auxilia a judoca a se concentrar na hora das lutas, não foi o suficiente para vencer a timidez.
Rafaela é de respostas diretas como seus golpes, mas prefere as frases curtas. Para esta reportagem, ela só descontrai quando brinca com a cachorra Moly, da raça pug, um de seus xodós. Apesar de não perder uma festa dos amigos da academia de judô, não é de se requebrar na pista de dança. “Na balada, a Rafaela sempre fica na dela”, diz o amigo Sérgio Souza, 20 anos. A família dela é majoritariamente evangélica, mas a campeã mundial foi poucas vezes à Igreja Assembleia de Deus Vai Agir, frequentada pelos pais. “Rezo sempre antes de dormir e na hora da luta”, diz a lutadora. A principal preocupação da mãe, Zenilda Lopes da Silva, 42 anos, é com a segurança da filha. Rafaela tem um utilitário esportivo Captiva e faz questão de deixar as amigas em casa depois das festas de madrugada. “Como ela é a única do grupo que não bebe, acaba se responsabilizando pelas outras”, diz Zenilda. Como se não bastasse, Rafaela ainda surfa no mar da Barra da Tijuca, nos fins de semana de sol.
Apesar da energia à toda prova e de, no mundo das aparências, ser uma fortaleza intransponível, Rafaela tem a alma doce e sensível. Depois de derrotar a americana Marti Mallori em menos de um minuto de luta, ela chorou ao vencer o Mundial no Maracanãzinho. Nos Jogos de Londres, também se debulhou em lágrimas ao perder para a húngara Hedvig Karakas. Na interpretação do árbitro, ela deu um golpe irregular ao puxar a perna da adversária. “Vi homens fazerem coisa parecida e não serem eliminados”, diz. “Agora pelo menos evito esse tipo de golpe.” Difícil mesmo foi suportar os comentários racistas feitos por internautas nas redes sociais após a eliminação. A vontade era, claro, de agredir aqueles imbecis, mas ela manteve a compostura, talvez um dos ensinamentos mais valiosos do judô. “A Rafaela sempre foi diferente”, diz Flávio Canto, um de seus mentores. “Em todos os meus anos de judô nunca vi nenhum atleta com a mesma vontade. Ela foi, de longe, a que mais gostava de competir.” As adversárias sempre temeram sua determinação. Aos 12 anos, quando foi disputar um torneio, Rafaela chorou porque nenhuma menina queria lutar contra ela, com medo de enfrentá-la. Forte, destemida, agressiva, teve muitas vezes que treinar com garotos. Ainda hoje, no Instituto Reação, ela enfrenta os homens de igual para igual.
O sucesso da judoca está estimulando novas adesões de crianças e adolescentes ao esporte, principalmente de meninas. “A história dela vai resgatar muitos jovens de comunidades carentes como a que Rafaela vive”, diz Paulo Wanderley Teixeira, presidente da Confederação Brasileira de Judô. “Depois do Mundial, já tivemos uma resposta muito positiva das academias”, afirma Ney Wilson, coordenador técnico da seleção brasileira. Além de Rafaela, o bom desempenho geral do judô feminino tem atraído garotas para um esporte até pouco tempo atrás essencialmente masculino.
A medalha de ouro da piauiense Sarah Menezes em Londres-2012 também surtiu efeitos positivos. “No Instituto Reação, já temos uma média de 35% de meninas nas aulas”, diz Canto. Para Rafaela, a vida mudou depois do Mundial. Nas ruas da Cidade de Deus não dá mais para fazer molecagens sem ser reconhecida. O assédio de clubes interessados em contratá-la também aumentou, mas ela se mantém fiel às origens. “Prefiro continuar no instituto”, diz a campeã mundial “Isso aqui é a minha casa.”

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