quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

TELONA QUENTE 108


Roberto Rillo Bíscaro

Raso demais reputar os países islâmicos como “atrasados” com relação à condição feminina e fechar os olhos pro Ocidente que ainda paga salários menores e necessita de infindáveis campanhas pra tentar reduzir a bárbara violência contra o “sexo frágil”.
Mais produtivo pensar em situações culturais diferentes, até porque parece haver espaço de luta e transgressão nas terras do Alcorão. Prova disso é que o primeiro longa-metragem produzido na Arábia Saudita, O Sonho de Wadjda (2013), foi dirigido por uma mulher, Haifaa al Mansour.
O filme conta a história duma garota que sonha em ter uma bicicleta, numa sociedade onde mulheres não podem dirigir e andar de magrela pode pôr em risco a virgindade, segundo o senso comum local.
O roteiro permite fascinante olhar sobre costumes, crenças e comportamentos duma sociedade da qual sabemos tão pouco. Aprendemos que se pode estudar o Alcorão através de software ao estilo Jogo do Milhão e que se parte da sociedade não vê com bons olhos a mobilidade feminina, isso não é terminantemente proibido. Senão, por que o lojista não se escandaliza e até reserva a bike, quando Wadjda visita sua loja? 
A narrativa linear e falsamente simples ganha muito com a soberba interpretação de Waad Mohamed, com seu olhar de garotinha esperta, que segue algumas normas pra poder quebrar outras. O roteiro, também de Mansour, não cai na armadilha abominável de criar aquelas crianças-prodígio, que nada mais são do que projeções do roteirista adulto. Prova disso é que Wadjda quase põe tudo a perder, num momento de inconveniente e inocente sinceridade pueril.
Coproduzido com a Alemanha, claro que o Sonho de Wadjda mira em “chamar a atenção do Ocidente pra opressão saudita”, mas o faz de modo tão absorvente e competente – e sem demonizar o Islã – que merece ser visto por quem se interessa por bom cinema.
Sugiro que seja visto em forma de trilogia com 2 outras películas resenhadas no blog, Persépolis e Forado Jogo, que também abordam aspectos da condição feminina, nesses casos, no Irã.

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