sexta-feira, 17 de outubro de 2014

PAPIRO VIRTUAL 81



Roberto Rillo Bíscaro

Talvez induzido pela série Vikings – ambientada quando não existia Inglaterra, mas Wessex e outros reinos – li Far From the Madding Crowd (1874), primeiro romance onde Thomas Hardy usa o fictício condado de Wessex. Esse truque pseudo-temporal de certa forma tenta cumprir um dos ditames de muito da tragédia grega, a saber, o distanciamento temporal da trama.
É truque porque fica claro que a ação se passa em algum momento do século XIX, mas a menção a Wessex remete a uma noção de pré-Inglaterra. O mundo rural em que se passa a história deve ter parecido ideal a Hardy pra emular o trágico em romance. O narrador afirma que o tempo não passava no campo, que costumes seguiam inalterados por gerações. Acontece que a Revolução Industrial e a sequente avalanche do capitalismo mudaram isso rapidamente. Quando da segunda edição, na década de 1890, Hardy reconheceu que muitos dos costumes descritos estavam mortos.
Como na trilogia semiautobiográfica de Flora Thompson, práticas campesinas abundam em Far From the Madding Crowd, constituindo-se um dos (poucos) atrativos pra leitores modernos. A tosquia, a remoção duma colmeia, a proteção da colheita contra a tempestade são pitorescos pros acostumados à urbanidade ou a interioridade de Austen ou Dickens. Muito da ação hardyana se passa ao ar livre, intensificando a sensação da pequenez humana perante a natureza.
E qual é essa ação? Far from the Maddding Crowd é uma trágica história de amor ambientada no campo. Batsheba (coitadinha, que nome!) é bela, impulsiva, com muito potencial pra independência e atrai vários homens: o pastor leal e fiel Gabriel Oak, o Sargento Troy, o fazendeiro Boldwood. Mas, ela escolhe “errado”, então a trama pode ser lida como uma espécie de educação sentimental de Batsheba, que, sendo mulher, tem que aprender a não ser independente ou voluntariosa.
Repleto de traços formais da tragédia grega, seria fácil apontar a falha trágica de Batsheba como coquetice ou algo assim, mas pra mim, sua “falha” reside na suprema transgressão de tentar romper – mesmo sem saber que o faz – a submissão feminina. Ela é proprietária por herança e quer fazer o que quer em um mundo masculino. Tinha que dar pau! Literalmente.
A “alma feminina” é descrita como fatalmente predisposta a cometer erros de julgamento. Batsheba pressente que o Sargento Troy causará problema, mas não consegue evitar juntar-se a ele, que, mais tarde, tipicamente culpa a moça pelo desastre: ela o seduziu. Ô coitado, incapaz de resistir à tentação feminina, que sempre causou problemas aos pobres e indefesos machos desde tempos imemoriais em diversas culturas. Os deuses são substituídos pela “natureza humana” na tentativa de tragédia de Thomas Hardy.
Mas, o que mais chamou minha atenção foi a fidelidade do narrador onisciente ao espaço campestre. Quando Batsheba vai atrás de Troy em Bath, a narrativa não se desloca pra cidade litorânea. Sabemos rumores vindos da urbe, mas ficamos no campo, esperando e temendo a intromissão do elemento citadino – Sargento Troy – que destruirá a paz no campo. 

E a pergunta que não quer calar. Se o pastor Oak tivesse propriedades ele seria elegível pra se casar com Batsheba? Leia Far From the Madding Crowd e talvez você descubra se o tão valorizado amor romântico e “desinteressado” opera nessa narrativa.

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