terça-feira, 21 de agosto de 2018

TELINHA QUENTE 323


Roberto Rillo Bíscaro

Na dramaturgia de Henrik Ibsen, amiúde uma personagem retornava ao lar, onde a situação estava aparentemente sob controle, e sua volta trazia à tona problemas do passado não-resolvidos e tudo acabava muito mal. Também era frequente no teatro do norueguês que algum problema social fosse responsável ou servisse de desculpa pra tragédia pessoal sequente.
As 2 temporadas de Frikjent (2015-16), produção da pátria de Ibsen, têm muito desse antecessor ilustre e também flerta com elementos trágicos, devidamente contemporanizados com um espectro de Nordic Noir e migalhas melodramáticas, vestidas de drama familiar complexo, denso, com personagens martirizadas pelo passado, obstinadas em seus objetivos e bastante nuançadas, bem ao gosto da TV moderna de boa qualidade.
Lifjord é linda cidadezinha incrustrada num espetacular fiorde no noroeste da rica Noruega. Encravada entre a água e a montanha, a vida econômica do local depende da Solar Tech, gerida pelos Hansteen, ou melhor, por Eva, a matriarca que domina a família e a aldeia.
O motorzinho do drama começa a funcionar aloprado, quando a empresa entra em bancarrota e passa ao controle dos chineses. Incentivado pelo marido de Eva, William Hansteen, originalmente o dono do dinheiro, quem vem a Lifjord tratar da aquisição da Solar Tech é Aksel Borgen, nativo da vila, mas, que há 20 anos não punha os pés ali.
Aksel se exilara voluntariamente da Noruega, porque nos 90’s fora condenado, mas depois absolvido (título em inglês para o mercado internacional, Acquitted) pelo assassinato da adolescente Karine. Mesmo absolto, a cidade jamais acreditou na inocência de Aksel, que é dado a crises de violência cega e quando jovem, a black outs. Às vezes, até ele duvida da inocência. Para piorar, complicar e dramatizar mais a situação, Karine era filha do casal Eva e William Hansteen.
Imagine um cara odiado pela cidade, que volta pra tirar dela sua fonte de renda, mantida pela família cuja filha podia ter morrido em suas mãos. Quando Aksel retorna, as portas do inferno se abrem e os vikings demonstram como sabem ser dramáticos e contar uma história profundamente triste, cheia de reviravoltas, revelações, segredos que vem à tona, ditos e desditos, incesto, alcoolismo, traição.
Os arquétipos do injustamente condenado que retorna à casa para limpar seu nome e o do filho pródigo que reaparece bem-sucedido se coadunam – às vezes, se cancelam -  numa narrativa em que, como na trágica, tudo acontece como o estouro de um dique. O mundo isolado, autocontido e claustrofóbico de Lijfurd funciona como imã mortal que prende e atrai de volta seus habitantes e parece existir quase que com regras próprias, por isso há repetições de julgamentos, tudo meio acelerado demais, mas a trama fascina tanto que nem nos damos conta quase.
A natureza tem papel metafórico fundamental, uma vez que cumpre pelo menos duas funções. Primeiro, a velha noção do Nordic Noir de nos perguntarmos como tanta miséria humana pode ocorrer em cenário tão deslumbrante. Segundo, a vastidão da montanha e os grandes corpos aquáticos reforçam o isolamento de Lifjurd, mesmo em nossa era globalizada.
Se Frikjent funciona espetacularmente como drama familiar, a tentativa de abordar o social se sufoca perante tanta angústia individual. Há sufocada subtrama que pretende a remunicipalização da Solar Tech. Para acadêmicos materialistas é passaporte pra comunicações em congressos, pois dá tranquilamente origem a dissertação ou tese, mas pros espectadores apenas desvia do que realmente interessa ao roteiro: botar aquelas personagens pra se autodestruírem pra nossa diversão.
Com elenco estelar pros escandinavos (ou pra nós fãs deles); correlação com caso policial real que sacudiu a Noruega nos anos 90; produção esmerada, Frikjent é mais uma série que posiciona a terra do A-Ha no mesmo patamar de suas irmãs Suécia e Dinamarca. Que bom pra nós escandinófilos!

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