segunda-feira, 6 de agosto de 2018

CAIXA DE MÚSICA 326


Roberto Rillo Bíscaro

Nas cada vez mais raras vezes em que é lembrado, A Flock Of Seagulls costuma vir à tona, quando se fala em artistas de apenas um sucesso, dos anos 80 ou para ironizar seus penteados estapafúrdios. Considerando-se que dois de seus fundadores eram cabeleireiros, eles deveriam tomar isso como elogio, até porque deram sorte de surgir praticamente juntos com a MTV. Assim, seu visual chamativo propulsionou o breve sucesso de massa, concentrado em 1982.
Formado em Liverpool, em 1980, o quarteto nunca fez tanto sucesso em seu país natal, por isso Mike Score vive nos EUA até hoje. Foram três álbuns entre 82-4 e desde então incontáveis mudanças de formação, desavenças, pitis, muitas turnês capitalizando o saudosismo oitentista e, volta e meia, menção aqui, outra acolá ou algum sucesso usado em comercial ou vídeo-game. Mesmo sem lançar álbuns, A Flock Of Seagulls (AFOS), aka Mike Score, se manteve na periferia dos radares pop.
Sem condições de adquirir rádio FM até 1983, por pouco não vivi o apogeu de I Ran, mas jamais esqueço de quando ouvi Transfer Affection, single do álbum Listen (1983), que também trouxe outro clássico, Wishing (If I Had a Photograph Of You), embora não me lembre dessa tocando nas rádios do interior paulista. Varridos das rádios pela metade da década, só reouvi Transfer Affection, na era do Youtube.
Não tenho hábito de escutar AFOS, mas quando percebi, totalmente ao acaso no Spotify, que havia álbum deste ano, deu vontade de baixar pra ouvir offline na caminhada de fim de tarde.
Agora sem cabelo, o quarteto original se reuniu para gravar Ascension, lançado dia 6 de julho. É a primeira vez que o AFOS de verdade se junta, desde a dissolução há mais de 30 anos. Seguindo a tendência orquestral de Visage e Midge Ure (só pra citar os resenhados no blog), os britânicos regravaram seus sucessos, acompanhados pela Sinfônica de Praga. Incidentalmente, não custa lembrar que o levantamento da Cortina de Ferro abriu todo o leste europeu e a fragmentada União Soviética pros artistas 80’s já em baixa no ocidente. Juntou fome com vontade de comer: os ex-comunas gulosos de viver, mesmo que com atraso, as delícias da Década Perdida (grrrrr) com velhas estrelas pop sequiosas por mais alguns momentos de fama e dinheiro. Então, talvez não seja mero acaso que o Orchestral, do Visage, tenha sido gravado com a mesma orquestra acompanhante do AFOS.
Assuma-se o quanto se quiser qualquer atitude de condescendência cool em relação ao “comercialismo” do AFOS, mas sua sonoridade cruzada entre Kratfwerk e (pós)-punk, com restolhos visuais, temáticos New Romantic, é uma das características dos três, quatro primeiros anos da década. O frio fluxo incessante de teclados é entrecortado e sobrepujado por crispas de guitarra gélida, baixão meio sombrio, bateria marcada e vocais robóticos, despersonalizados. Sem contar os diversos tremeliques e barulhinhos da produção, que aqui no Brasil, sempre em dia com seu atraso, persistiram a década toda.
Com Ascension, AFOS prova ser cônscio de seu papel como um dos ícones – para o bem e para o mal – do som e imagem dos 80’s: ao invés de reinventar as canções, o quarteto original regravou-as o mais fidedignamente possível, com todos os maneirismos de produção de então. A orquestra serve para dramatizar, fortificar, adocicar, criar introitos e intermezzos, como é o literal caso da faixa-título, única inédita do álbum, curto número orquestral antecedendo a hipnótica Wishing (If I Had a Photograph Of You), que inicia teutônica, mas cujo tratamento orquestral confere arzinho de Jean-Michel Jarré, fase Les Concerts en Chine, de 1982, aliás. Zeitgeist é vida.
Faixas dançantes continuam puláveis; Ascension não pretendeu conferir “dignidade” orquestral a delícias como I Ran, Modern Love Is Automatic, Telecommunication, Nightmares (que baixo lúgubre!), DNA ou Electrics. Mesmo algumas mais lentas, como Space Age Love Song; The More You Live, The More You Love (resplandecente) e Transfer Affection não são baladas, mantém aquela fluidez deslizante dos jovens que cantavam um futuro imaginado de amores computadorizados, eletricidade de neon, mas sempre com o holocausto nuclear como horizonte possível. E é esse caráter distópico da ficção-científica do AFOS, que encerra o álbum com Man Made e seu casamento de Kraftwerk com Joy Division.
E como a caminhada rendeu com Ascension! Coincidência que escolhi a quadra de minha velha escola de Ensino Médio (na época não se falava assim, era Segundo Grau) para circular, enquanto o ouvia? Na EEPSG Adelino Peters estava, quando os temas e sonoridades do AFOS viveram seu auge. Enquanto a batida robotizada da New Wave aligeirava meus passos ao redor da UE, na qual também lecionei, cada timbre e modo de tocar me lembravam bandas ainda mais esquecidas, como Azul 29 e Eletrodomésticos.
Sorri ao comparar a tecnologia louvada da época, que decerto nem sonhava ainda com o smartphone conectado ao serviço de streaming, emitindo suas ondas via bluetooth pra meus fones de ouvido wireless. Saudosista com qualquer coroa, não chego a dizer que antigamente era melhor. Mas, que quando começou Transfer Affection deu um aperto no coração. Por mais antenado que tente ser, ele sempre pertencerá àquela década, jamais perdida na memória de nós que a amamos tanto.

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