quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

CONTANDO A VIDA 223


BRASIL FORA DE SI; A VENEZUELA EM NÓS... 

José Carlos Sebe Bom Meihy 

Na passagem do século passado para o atual, há mais de 18 anos, eu morava em Nova York, graças a uma generosa bolsa de estudos na Universidade de Columbia. As condições de trabalho nos Estados Unidos eram magníficas devido ao surto progressista do governo Clinton e as oportunidades se multiplicavam para imigrantes, até mesmo ilegais, que se ocupavam de pequenos trabalhos. Em contraste, no Brasil, as coisas iam mal, e do fim da década de 1990 em diante, assistia-se a um fenômeno que em si explicava a nossa chamada “década perdida”, ou seja os anos de 1980, principalmente a fase governada por José Sarney. Eram anos duros para a economia e parcela de brasileiros se retirava do país em busca de melhores lugares ao sol do capitalismo que se internacionalizava. Os Estados Unidos se afiguravam como espécie de refúgio salvador, e levas de brasileiros afluíam, principalmente para a Costa Leste, em particular para o Sul da Flórida, Nova York e Boston. É muito difícil explicar a complexidade de um fenômeno que, afinal, implicava cerca de cinco milhões de pessoas, brasileiros, que deixavam o país num êxodo nunca suficientemente justificado, e, cá entre nós, convenientemente evitado. 

A começar pelos números, as imprecisões assustam. Em termos oficiais, como imigrantes legais, o nosso Ministério das Relações Exteriores registrava cifras risíveis (pouco mais de 3 milhões, no mundo todo). Não que sejam dados incorretos, mas ao considerar os preceitos legais, deixavam às franjas os ditos “ilegais”, “clandestinos”, “indocumentados” ou “em trânsito”. Coloque-se nessa mesma parcela o montante de estudantes e estagiários (que vão sob condição temporária, e acabam fincando para sempre) e tem-se um resultado bem mais dilatado (à época, cerca de 5 milhões). O dramático dessa contabilidade atualizada é que aos governos nunca interessou divulgar que hoje temos mais de sete milhões de brasileiros fora do Brasil. Não precisa ser demógrafo para avaliar os benefícios que fazem com que os governos escondam os patéticos números. Em primeiro lugar, vale a lembrança de que são jovens, em plena capacidade de força e que, se no Brasil, complicariam o já quase insuportável, por concorrido, mercado de trabalho. Acresce-se a isso um fato quase nunca revelado: os brasileiros fora do Brasil contribuem como envios de dinheiro, fato que interessa enormemente à economia do país. Por si só essa situação mereceria notoriedade, pois explica a manipulação de dados. Mas, há outra razão que vale destaque: a falta de cultura imigratória, pois os brasileiros que emigram não gostam de se ver no espelho problemático. Somos resistentes ao rompimento de laços culturais e isso é quase mitológico. Talvez o apego familiar esclareça a permanência dos vínculos parentais e faça com que se anule a noção de permanência fora, deixando-se de ser brasileiro. 

A recuperação econômica das últimas décadas, até 2014 (falsa ou não), permitiu um alívio no fluxo para o exterior. Desde os recentes acontecimentos, principalmente depois do impedimento da Presidente Dilma, reacendeu-se a teima imigratória. Há novidades notáveis e elas se dilatam em duas tendências: em uma ponta, nota-se que não se trata mais de grupos majoritariamente pobres, indefesos. Em outro extremos, nota-se que a classe média que compõe tal fluxo prefere a Costa Oeste. Isso é revelador de um novo estágio na evolução imigratória brasileira. Se antes falávamos de miseráveis, agora nos referimos a grupos escolarizados e que deslocam o foco imigratório para as regiões mais progressistas do país norte-americano, exatamente para a região da Califórnia onde estão oportunidades de empregos ligados às ciências aplicadas e às tecnologias. Não que deixem de ir também pessoas menos favorecidas economicamente, mas o grosso da população “neo-imigrante” é branca, escolarizada, falando inglês e possuindo algum capital para adaptações iniciais. 

Tais constatações chamam a atenção pelo avesso da consciência pública dos fenômenos imigratórios brasileiros atuais. Vê-se quase diariamente alertas – até de justos teores humanitários – relativos aos venezuelanos que afluem ao Brasil. Problema sério esse e que remete à fome, doenças, falta de dignidade mínima. Tudo muito grave e carente de soluções elementares. O que causa espécie no entanto é a desconsideração do nosso problema como crescente grupo que saí do país, também em busca de oportunidades. É lógico que não se aceitam processos comparativos, até porque as diferenças são obvias, principalmente de classe social. Isso, contudo, não silencia questões importantes. Por que vemos e salientamos o Brasil como polo receptor de exilados, deportados ou expatriados e não aplicamos os mesmos pressupostos para os nossos que saem? Na mesma linha, pergunta-se se a sutileza cultural e conveniência discursiva não resultam em alarde de uma onda, e silenciamento de outra? Na aparência, a discrepância entre fome e busca de emprego qualificado é significante. E é mesmo, mas isso não é razão suficiente para se explicar o não alarde dos que saem. 

A recente tragédia do jovem atirador que em escola da Florida, matou 17 pessoas, propôs reportagem no Fantástico, onde cerca de 20 estudantes brasileiros apresentaram seus pontos de vista. Dizia a mesma sequência que existiriam mais 50 alunos brasileiros. Todo o grupo era composto por jovens brancos, saudáveis, bem vestidos. No mesmo programa, a reportagem mostrava em outro quadro, os venezuelanos marginalizados na fronteira norte do país. O surpreendente é que uns são tratados como imigrantes e os demais... Os demais, nós mesmos, somos apenas vistos como parte de um sistema injusto que classifica os outros como imigrantes. O pior porém é que se vale da situação complexa da Venezuela para mostrar um pedaço de uma problemática muito mais complexa. Aí sim cabe considerar os venezuelanos que fogem da miséria como vítimas de um sistema horripilante, mas os brasileiros que saem... Que são? Pensemos. Pensar faz bem.

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