quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

CONTANDO A VIDA 134

Nosso historiador-cronista sempre foi muito chegado em literatura, especialmente poesia. Para encerrar o ano que tal "ouvi-lo" falar lindamente sobre Drummond e Fernando Pessoa?  

FERNANDO PESSOA E MEU DESASSOSSEGO.

José Carlos Sebe Bom Meihy

Quando mais jovem, gostava de poesia. Exigente, colecionava autores e com o mesmo entusiasmo desprezava outros tantos. Cheguei a fazer uma espécie de antologia e elenquei autores diversos, muitos estrangeiros. Logo descobri que havia um segredo capaz de me introduzir no estranho mundo dos poemas: a história dos autores. Sim, sou daqueles que acreditam que vida e obra se fundem e que é impossível gostar da produção de alguém como se nada houve com a experiência autoral. Continuo assim, e, aliás, não é só com poesia. Curiosamente, sempre gostei mais da produção poética estrangeira do que da nacional. Tenho uma explicação para tanto, pois eu queria aprender alguma outra língua e a surdina da leitura de versos em francês ou inglês me supria. Guardo ainda alguns ensaios de tradução e até acho graça do solitário e mudo esforço. Sem exagero, o que aprendi da língua de Cervantes derivou dos versos toscamente vertidos para o meu português. Dos poetas que versejavam em nossa língua, com certeza, Drummond tinha primazia. Cedo aprendi a gostar de “Rosa do povo”, e tratei de decorar versos que sei dizer até hoje. Escrito entre 1943 e 45, o conjunto de versos políticos traduzia a angústia da produção escrita durante a guerra. Havia para mim, exatamente por ter nascido naqueles anos, uma espécie de mensagem visceral, fator explicativo do tom vital de minha geração. Assim, posso dizer que os poemas da fase "eu menor que o mundo", se compuseram como meu primeiro convite à suposição de uma literatura comprometida. A devoção política, a crítica à guerra e ao sofrimento humano perante tiranias, coloriam meu nascente ideal social. E me comovia com o "sentimento do mundo", que mostrava nossa fraqueza mediante um mundo materializado em máquinas, poderios enormes.
Confesso que Drummond assumiu papel tão importante que os demais poetas brasileiros ou portugueses e mesmo alguns africanos ficaram de lado. Houve, contudo, sempre uma exceção perturbadora, Fernando Pessoa. Na altura da maturidade, me cabe retomar esse sentimento ambíguo e tentar alguma explicação que escape do simplismo “gosto X não gosto”. A história pessoal de Fernando Pessoa me é cativante. Chave importante para o entendimento de sua poesia, os heterônimos são intrigantes e por isso apresadores do gosto que convoca pensar a fatalidade da vida expressa na obra. Não tenho como negar, contudo, que há aspectos da produção desse autor que me afastam da apreciação pura e simples. A vulgarização de certas passagens que caíram no domínio popularesco me arreda do refinamento que exijo da poesia (“tudo vale a pena se a alma não é pequena”, por exemplo). De igual monta os trocadilhos ou jogos de palavras assustam e me diminuem em entendimento. Mas pendularmente, há o que me atrai de maneira cativante, ainda que não sejam poemas. Entre tantos conjuntos de escritos o “livro do desassossego” me diz muito e particularmente uma passagem onde ele faz uma contestação ontológica. Sobretudo, há uma passagem apaixonante: “a renúncia é a libertação. Não querer é poder”. Contrariando o senso comum que advoga que o poder está na vontade, Pessoa nega a premissa e progride afirmando “que me pode dar a China que a minha alma me não tenha já dado? E, se a minha alma mo não pode dar, como mo dará a China, se é com a minha alma que verei a China, se a vir? Poderei ir buscar riqueza ao Oriente, mas não riqueza de alma, porque a riqueza de minha alma sou eu, e eu estou onde estou, sem Oriente ou com ele” e arremata com o seguinte dizer “transeuntes eternos por nós mesmos, não há paisagem senão o que somos. Nada possuímos, porque nem a nós possuímos. Nada temos porque nada somos. Que mãos estenderei para que universo? O universo não é meu: sou eu”. Não preciso dizer que estas citações me “desassossegam”, pois formulam o grande dilema da humanidade: o autoconhecimento e a responsabilidade de fugir do mundo esterno. “Desassosseguemo-nos”.  

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