quarta-feira, 19 de novembro de 2014

CONTANDO A VIDA 88

Neste final de ano, nosso historiador-cronista filosofa sobre as virtudes do esquecimento e do otimismo, dentre outras coisas.  

LEMBRAR E ESQUECER.

José Carlos Sebe Bom Meihy


O fim do ano está aí. Mais uma coleção de dias somados se lança no mistério do tempo passado. É momento de avaliação, de meditar sobre feitos e desfeitos, conquistas e derrotas. Estranho esse processo pessoal, íntimo e muitas vezes secreto. A inevitabilidade de se assumir tal postura é assinalada pelos rituais que marcam o suposto fim de etapas que alimentam esperanças sempre remoçáveis. Quem trabalha com temas como “memória”, no entanto, aprende logo que o esquecimento faz parte de seu conteúdo. Não existe lembrança sem esquecimento. Apesar da aparente contradição entre lembrar e esquecer, no âmago da estrutura rememorativa, o verbo esquecer se apresenta como condição. Toda memória é seletiva e seu comportamento se orienta exatamente pela escolha – consciente ou não – do que deve permanecer. Muito além dos preceitos teóricos de quantos filósofos se dedicam ao assunto, me ocorre sempre um poema do alemão Bertold Brecht que reza no verso intitulado Louvor do Esquecimento: “Bom é o esquecimento senão como é que o filho deixaria a mãe que o amamentou e que lhe deu a força dos membros e o retém para os experimentar?/ Ou como havia o discípulo de abandonar o mestre que lhe deu o saber?/ Quando o saber está dado o discípulo tem de se pôr a caminho./ Na velha casa não entram os novos moradores se os que a construíram ainda lá estivessem, pois a casa seria pequena demais./ O fogão aquece o oleiro que o fez e já ninguém o conhece o lavrador e nem reconhece a broa de pão./ Como se levantaria, sem o esquecimento da noite que apaga os rastos, o homem de manhã?/ Como é que o que foi espancado seis vezes se ergueria do chão à sétima pra lavrar o pedregal, pra voar ao céu perigoso?/ A fraqueza da memória dá fortaleza aos homens”.
Que o ano foi difícil não resta dúvida. Foram tantos os eventos significativos que nossa memória se exercita em sínteses fatais e que sentenciam o passado como “bom” ou “ruim”, simplesmente. Válido ou não, precisamos do julgamento, pois sem ele tudo fica relativo. É exatamente neste panorama que atua a construção da moral da vida. Valem, portanto, as sondagens sobre o que esquecemos, ou melhor, sobre o que escolhemos deixar de lado. Nem sempre tais opções ocorrem no nível da consciência, pois muito dessa prática acontece em surdinas voluntárias. De toda forma, a saúde vivencial recomenda o abandono de fatos doloridos, desprezíveis ou ameaçadores. É preciso continuar vivendo, erigindo sonhos que nos impulsionam, senão... Se acumulamos fatos maus, se não os negociamos com a capacidade de perdão, como continuar a crer na humanidade, nos tais próximos mais próximos, nos amigos que precisamos para alimentar convívios? Sempre que me deparo com alguém esperançoso e otimista, avalio sua capacidade de abandono das agruras que a vida impõe a todos. Felizes não são os que apenas esquecem, mas, sobretudo, aqueles que aceitam os fatos deixados de lado. Por certo, os que fazem dos dilemas existenciais a razão de suas lembranças e nutrem um compósito de ódio e mágoa e para si prescrevem sombras atormentadoras. Talvez tenha sido por isso que Santo Thomas decretou que a gentileza é a rainha das virtudes. Mesmo sem caminhar pela trilha religiosa, sabe-se do potencial otimista contido no dizer de São Francisco: é dando que se recebe. O avesso de certa alienação santificadora nos convida pensar no significado do gesto presenteador. Sim, fim de ano é época de pensar nas inefáveis “lembrancinhas”. Confesso que fico encantado com o significado dessa palavra e com a dinâmica internada na conjugação de letras que tanto remetem ao verbo “lembrar” como no substantivo “lembrança” e assim arremato esta breve ponderação: que nossas lembranças sejam símbolos esperançosos do que soubemos depurar. Já que entramos nos jardins da polissemia, que os ajuizamentos aqui presentes, sejam lembrados e depois esquecidos em festas promissoras.

Nenhum comentário:

Postar um comentário