quarta-feira, 13 de março de 2019

CONTANDO A VIDA 269

A MULHER DO ANO (mês de março, abril, maio...) 

José Carlos Sebe Bom Meihy 

Basta o enunciado do tema/pretexto do mês março e as mulheres ficam oiriçadas, empinam o nariz e reivindicam “lugar de fala”, “empoderamento” e “direitos iguais”. Nada contra, imagine; pelo avesso, perfilo presença entre os tietes desses seres que são a um tempo geradores de vida, mantenedoras de férteis contradições, incessantemente obstinadas em suas certezas. Não o faço, contudo, ingenuamente e sem reconhecer que na humanidade feminina combinam graças e venenos, afetos e desconfianças, tudo subjugado a úteros, TPMs, menopausas. Que também seja rasgada a simplificação do darwinismo de botequim que contrapõe força máscula à fragilidade feminina. E que fiquem fora do jogo os tais que insistem em mostrar o lar como espaço em que elas devem exercer como “rainhas”. Digo até mais, que numa golfada de vômito se ponha, definitivamente para fora as malditas divisões eivadas do pior preconceito cromático como os expressos pela pastora/ministra que reduz a complexidade das nuanças biológicas humanas a um azul e rosa, tão idiotamente definidos como ela própria. 

De certa forma, que se repita minha assertiva de ser um feminista avant la lettre e ostentador muito orgulhoso do reconhecimento delas em plano de paridade, parceria e união. Sinceramente, nem precisei esperar o vapor do politicamente correto para aquecer sentimentos de profunda simpatia pelo mulherio em geral. Creio que a raiz disso se deve à admiração amorosa que devoto a minha mãe, mas que se dimensiona também através dos reflexos especulares dados pelo olhar devolvido pelas mulheres que sempre enfeitaram minhas relações próximas ou distantes. Olhando-as pela ótica do pretérito, vejo exaltado sempre o melhor de mim, o que tenho de mais afetivo. 

Mas, longe de alvos imediatos e tangíveis no âmbito pessoal, entre tantas, me pergunto: quem seria a mulher do ano, a pessoa que mereceria reconhecimento pelo público que emblema? Com que argumentos poderíamos exaltar alguém com a força de uma ode justificadora do que mais representativo temos em termos de brasilidade? E como flor que brota da lama, o nome de Marielle Franco surge na recitação de atributos da mulher brasileira moderna. Comecemos pela combinação de sínteses ou encontros que marcam nossa cultura: mulata, dona que foi de uma cabeleira solta e livre, vestindo sempre estampados de matriz africana, mas muito mais que isso, exaltadora de causas de minorias, declarou-se, ela própria, lésbica assumida na dignidade de quem antes tinha sido mãe. Depois de vida difícil como camelô, estudou e, sendo beneficiada por cotas estudantis na PUC/RIO, foi eleita a quinta mais votada vereadora em 2016 onde, na capital fluminense, exercia seu primeiro mandato com estrada aberta para um futuro promissor. Juntamente com seu motorista Anderson Gomes, no dia 14 de março do ano passado, Marielle foi premeditadamente assassinada. Com nítidos nós amarrados no cipoal político, as investigações patinam e não chegam à revelação de nomes bandidos. A provar o empenho da jovem edil, Marielle saia de um evento inscrito na causa da mulher negra, portanto em seu labor político, e isso por si só, fica a provar a seriedade de seus empenhos militantes. Os enquadramentos policiais adequados, pois, o inscreve em crimes de responsabilidade pública, circunstância que ainda mais causa perplexidades a quantos clamam por justiça institucional. Como os investigadores não descobrem (não descobrem ou não revelam?) os mandatários do atroz dolo, a memória coletiva alimenta exaltação que já está plasmada no libertário DNA nacional. A longa ausência de culpados fura um calendário que, por infeliz coincidência, completa um ano exatamente no “mês da mulher”. Sem respostas públicas, o triste enredo desta trama diabólica sugere articulações comprometedoras das malhas políticas dominantes. E, mais que tudo, isto aturde nossa democracia, deixando latente a certeza de mudanças que, por paradoxal que pareça, hão de vir pela voz popular que se afina. 

No pulsante coração do corpo brasileiro, Marielle continua viva e vê, dia após dia, crescer seu exercício de busca de liberdade. Em resposta ao silêncio denunciador de estratégias mirabolantes, o coro dos contrários entoa brados de indignação. Resposta dialética aos não ditos da justiça, Marielle Franco vive e já virou nome de rua e praças, de movimentos políticos, de escolas, e com afeto se eternizou em blocos e sambas que desfilaram neste carnaval. E não foram em agremiações miúdas, não! A Estação Primeira de Mangueira no Rio de Janeiro e a Vai-vai, coletivos populares que agregam as mais inflamadas torcidas carnavalescas, provam isto. Pouco se pode dizer do futuro do processo criminal da vereadora saudosa, mas, a certeza do amor popular por Marielle há de vingar atrocidades mascaradas. É exatamente na exaltação a ela, que são assumidas suas causas combatentes, e isso a faz merecedora da escolha de mulher do ano. E ela materializa em sua ausência física todas as demais mulheres e seus homens, seguidores. Marielle vive...

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