terça-feira, 13 de novembro de 2018

TELINHA QUENTE 335

Roberto Rillo Bíscaro

Mike Bartlett deve ter ficado bem mais conhecido do grande público mundial, quando Doctor Foster estourou e foi premiada. Ambas temporadas estão na Netflix. O dramaturgo inglês já era bem conhecido nos círculos teatrais, porém, e sua peça King Charles III fora sucesso no West End londrino e na Broadway, sendo até indicada a Tony.
Nela, o dramaturgo esboça uma Grã-Bretanha imediatamente após a morte de Elizabeth II, quando seu primogênito sobe ao trono, após décadas desejando a morte da mãe pra que alcançasse o poder. Mas, o monarca inglês não o tem mais, é figura decorativa, o que o incomoda deveras. Na primeira reunião com o Primeiro Ministro, o Rei Charles se apõe a um projeto de controle da mídia, embora ele mesmo e a Família Real como um todo tenham sofrido horrores nas mãos dos tabloides. Turrão, Charles III não aceita concessões e, usando velha prerrogativa Real, real apenas no papel, dissolve o parlamento desencadeando monstruosa crise constitucional.
Pra ultraje dalguns políticos Tory, a BBC levou ao ar, em maio do ano passado, sua adaptação dessa tragédia moderna, mantendo, inclusive, os diálogos em verso livre e os solilóquios ditos olhando pra câmera. Cada vez que resenhista diz que isso é influência de House Of Cards, um professor de literatura inglesa falece.
King Charles III subscreve-se à tradição de Shakespeare. O Bardo frequentemente indicava que se a Casa Real estivesse uma balbúrdia, o reino todo entraria em caos. Longe de pregar qualquer espécie de democracia representativa no início da Era Moderna, o dramaturgo não deixava de apontar que, prum reinado ser eficaz, havia que existir certas responsabilidades recíprocas entre rei e súditos. Quando Charles ordena que os tanques sejam virados em direção à multidão, qualquer conhecedor de Shakespeare sabe que está danado. Como isso termina, porém, tem mais a ver com índices de popularidade da era do Instagram do que com os banhos de sangue apreciados pelos elizabetanos primeiros.
Dialogado e monologado em versos brancos – como nas peças de Shakespeare – King Charles III traz uma Duquesa de Cambridge (Kate Middleton, pros não inteirados) à Lady Macbeth não arrependida e um príncipe Harry pensando em abdicar de seu principado, porque conheceu uma moça pobre, negra e... republicana! Depois que você saca a influência shakespeariana fica fácil deduzir o que fará Harry ao final. A chave está no Prince Hal, de Henrique V. Mas, como sou noveleiro anglófono, logo lembrei no comportamento dos internamente beligerantes Ewings, Sopranos e Carringtons, quando ameaçados externamente! Dynasty e DALLAS também são trágicos! Curiosidade: Richard Goulding, o ator que interpreta Harry, vive a mesma personagem em chave bem distinta, na deliciosa sitsoap The Windsors (tem na Netflix).
O filme é ótimo, denso e dramático, mas perdeu o caráter presciente da peça, o que nada influi em seu resultado artístico, obviamente. Em 2014 Harry ainda não namorava uma afrodescendente, não havia declarado publicamente seu desgosto por tanto bullying midiático e os memorandos lobbystas de Charles ainda não haviam sido divulgados.
King Charles III é tão Shakespeare que tem até um espectro, assombrando Charles e seu filho William. Quem poderia ser que não a Princesa Diana? Ela faz a mesma previsão pro ex-marido e pra Wills. Aparição pérfida!
Sem procurar transformá-lo em simulacro do Charles de verdade, King Charles III apoia-se na soberba interpretação de Tim Pigott-Smith, falecido subitamente antes da exibição pela BBC2. O elenco todo está fantástico – muitos atores os mesmos da montagem teatral – mas o próprio título chama os holofotes pra Smith. Mas não dá pra não citar Charlotte Riley que constrói uma Kate que sempre virá à cabeça, quando eu vir a simpatia estudada das aparições da Duquesa. E o que dizer da miraculosa Tamara Lawrance, a namorada afro de Harry, que consegue desteatralizar as falas em pentâmetro iâmbico, melhor do que qualquer um no elenco? Nada contra teatro, mas estamos falando de produção pra telinha e o que funciona num meio não necessariamente é fácil de aguentar em outro.
King Charles III é obrigatório pra qualquer anglófilo ou estudante/pesquisador de dramaturgia, Shakespeare e afins. E também pra quem gosta de um bom teatro filmado.
Confissão de velho fã dos Smiths: quando Charles monologa “The queen is dead...”, não pude evitar de completar cantarolando “and it’s so lonely on a limb”.

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