segunda-feira, 12 de novembro de 2018

CAIXA DE MÚSICA 339

Roberto Rillo Bíscaro

O Sertanilia caracteriza sua música como sertanesa, feminino do sertanês utilizado nas obras de Elomar Figueira Mello. Segundo o trio, o neologismo foi criado para se diferenciar de "sertanejo", palavra que foi perdendo o real significado e se distanciando do universo do sertão à proporção em que foi empregada pelo mercado musical das grandes gravadoras.
Formado em 2010, o Sertanilia é composto por Aiace (vocais), Anderson Cunha (violão, bandolim e viola) e Diogo Flórez (percussão). São sempre acompanhados por João Almy (violão), Fernanda Monteiro (violoncelo), Mariana Marin (percussão) e Raul Pitanga (percussão). Essa profusão de instrumentos traduz-se em riqueza sônica inspirada nas diversas manifestações culturais do sertão, como cocos, maracatus, sambadas e ternos de reis. Sem sucumbir a folclorismos anacrônicos na produção, os baianos mesclam com destreza boa dose de contemporaneidade às tradições que querem registrar.
Premiado e com diversas apresentações em países como Portugal, Holanda e Espanha, o Sertanilia tem dois álbuns, que podem ser baixados gratuitamente no link:
O primeiro álbum, Ancestral (2012), foi apoiado pelo Conexão Vivo e Governo do Estado da Bahia. São 14 faixas, onde o grupo apresenta canções autorais e releituras. Traz convidados especiais, como Bule-Bule, Xangai e os percussionistas pernambucanos Nego Henrique e Emerson Calado, que fizeram parte do Cordel do Fogo Encantado e Gilú Amaral, da Orquestra Contemporânea de Olinda.
Além das regravações e do material próprio, o Sertanilia salpica Ancestral com vinhetas extraídas de material autêntico dos grupos de Folia de Reis que pesquisa. É o caso de Areia do Mar, Canto de Chegada e Canto de Despedida. Em Eu Vou Embora Daqui, a música sertanesa autêntica é misturada com efeitos de estúdio, como sinos, choros e contracantos meio clérico-góticos.
Polida produção e simbiose entre tradição e ruptura garantem o apelo universalizante do Sertanilia. Tome-se o caso de Ciranda do Fim do Mundo. Inspirada no ritmo do título, a canção é porém, tensa, densa; espécie de neurótica ciranda urbana, em consonância com a letra-denúncia da roda-viva do consumismo contemporâneo.
Felizmente, porém, existe muito tempo e espaço pra lirismo e felicidade em Ancestral. Sambada de Reis e Nobre Folia são pura ferveção de Reis; Pombinha do Céu é catirento coco, ritmo que também informa Pras Bandas de Lá. Mas, note como os momentos finais da canção orientalizam-se num clima 1001 Noites. E quem disse que a ibérica Folia de Reis não tem influência mourisca?
A linda voz de Aiace incandesce o clima sertão-carcará de Incendeia e emociona na longa Meus Buritizais Levados de Verde, lamento fúnebre, que tem recitação de trecho decisivo de Grande Sertão: Veredas. 

Em 2017, o Sertanilia voltou com Gratia, 14 faixas, contando com as vinhetas extraídas de reinados autênticos do alto sertão baiano e trechos de puro depoimento de História Oral.
Exceto pela faixa-título, Gratia vem menos brejeiro e bem mais épico, como atesta O Mundo de Dentro da Minha Cabeça. A poderosa percussão contribui pra epicização do sertão, como a da galopante Balada Para Uma Vingança. Os baianos não se rendem à folclorização ingênua de jeito nenhum: veja como a embolada de Corre Canto é urbana e modernamente urgente e nervosa e a letra de Gado Manso fala muito mais do que dos bovinos, mas de massificação e manipulação midiáticas. Como não se vive apenas de ápices, Confissão é lamento embalado por violão e violoncelo.
A tradição de reis é fruto do encontro da herança ibérica das festas da Natividade - vindas com o imigrante galego-português - com a cultura dos descendentes dos africanos cativos no sertão, resultado numa expressão popular única. Gratia veio cheio de referências hispânicas: a espanhola Gaudi Galego dueta com Aiace em Devagar; há linda faixa chamada Castela; musicalização de parte da cantiga de amigo Flores do Verde Pinho, de D. Dinis; além de referências instrumentais à musica galega no decorrer do álbum.

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