quarta-feira, 25 de julho de 2018

CONTANDO A VIDA 241

MONTEIRO LOBATO E DONA PUREZINHA

José Carlos Sebe Bom Meihy

Sempre desconfiei da expressão “atrás de um grande homem, existe uma mulher”. E minhas dúvidas variavam do eventual elogio do feminino, ao reforço do machismo, pois, afinal, o referente principal é a existência de um “grande homem”. A mulher ficaria, assim, como complemento. Tudo se complica na medida em que se aprofundam os questionamentos suplementares, algo do tipo “e atrás dos homens, não tão grandes”? Pior ainda, quando se inverte a equação “e atrás de alguma mulher grande”? Os desdobramentos podem se multiplicar ao infinito e, de qualquer conclusão, sabe-se que não despontará nada que qualifique a mulher por si, sem homem que lhe garanta protagonismo. Essas minúcias decorreram de uma situação concreta e surpreendente. Estive no arquivo da Unitau, em Taubaté, investigando sobre a documentação de Lobato. Por ouvir falar, uma amiga solicitou que eu buscasse os cadernos de Dona Purezinha, esposa de Lobato. Coisa aqui, coisa ali, acabei por demorar, até que surgisse a possibilidade de examinar o material específico. Confesso que fui prevenido, pois imaginava (e acertei em cheio) a precariedade do acervo e a modéstia nas condições de guarda. Mas fui, até o fim da proposta. 

Com simpatia, a atendente me ajudou a achar as quatro caixas com os documentos supostos. Começava aí minha perplexidade. Em primeiro lugar, devo dizer que não me abati frente o maltrato do material. De início, defensivamente, nem fiz muita questão, posto que nenhuma grande revelação ocorria. Aconteceu que na última caixa, encontrei um pequeno tesouro: um caderno de anotações de Dona Purezinha. Sabe-se que ela, na surdina das companheiras de personagens famosos, selecionava e reescrevia textos inteiros ou fragmentos significativos de documentos pessoais. E no caso, foram sete cadernos que não estão reunidos e sequer considerados. Na lógica rasteira dos biógrafos, é Lobato o centro das atenções. Sem nenhum cuidado requerido, como qualquer outro papel sem valor específico, um gasto caderninho guarda os tais registros da ainda pouco conhecida Dona Purezinha. As cópias que a esposa dedicada fazia do marido famoso dizem muito dele, mas dizem muito mais dela. Com cuidadosa letra, cartas inteiras ou pedaços foram juntadas à outras informações, também fracionadas: relação de parentescos em suposta árvore genealógica; princípios espiritualistas e informações contábeis. Entre as cartas, uma me enterneceu mais que todas, e esta foi, talvez, a primeira, escrita quando esteve fora de Taubaté, e, com cuidados e vergonha avisava a todos os familiares que havia sido reprovado nos exames. No outro extremo, uma carta escrita na cadeia, em 1941, ele falava da experiência de ser preso. É sabido que no presídio, Lobato escreveu muitas cartas, mas esta, a primeira, ele enviou para a esposa. 

Independente dos tópicos da carta da prisão, há algo mais que clama reflexões, e dentre tantas, uma pergunta desponta sobre todas: qual o papel de Dona Purezinha na vida de Lobato? Na aparência seria ela mais uma das tais “mulheres atrás de um grande homem”? Por certo, não se trata de deslocar o personagem de seu papel no complexo panorama da história das mulheres. Dona Purezinha não poderia fugir do desempenho desenhado para o gênero de acordo com os padrões de sua época. E nada dessa lenga de “mulher fora de seu tempo”. O tempo de cada qual é o tempo que lhe cabe, e pronto. O que distingue essa mulher das demais é a dedicação irrestrita à seu marido. E isso se mede pelas delicadezas com que acompanhou o agitado escritor e como ela recortou fatos marcantes de sua admiração. O fato de ter guardado as cartas, feito cópias delas, revela também a colagem de temas fundamentais para se pensar a própria biografia dessa mulher desfocada. Discreta, cuidadosa, receptiva, ela ocupou o lugar que lhe cabia, mas com mais solenidade do que se esperava. 

Um dos problemas que muito me encafifam nas análises sobre Monteiro Lobato é a despersonalização de suas manifestações. Visto sempre como “homem público” parece que ele foi só editor, só defensor do petróleo, só escritor de sucesso, tudo, porém sem vieses humanos. E ela, figura apagada. Por ironia, foi pelas letras escritas que o “taubateano rebelde” se fez conhecer. Será que não é pelas letras de Dona Purezinha que a devemos reconhecer?

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