quarta-feira, 18 de julho de 2018

CONTANDO A VIDA 240

PELA REVISÃO DA LEI DA ANISTIA.

José Carlos Sebe Bom Meihy

As recentes denúncias de que houve corrupção no governo militar brasileiro (1964 – 1985) trouxeram de volta um tema que deve dilatar debates. Na verdade, não se tratava de nenhuma grande revelação, pois grande parte da população menos ingênua sabia á sobejo. Talvez, o impacto recente da “novidade” tenha sido mais flamejado devido o destaque veiculado pela mídia em geral que, aliás, tem insistido no tema. Nessa linha, por exemplo, a camaleoa Rede Globo de Televisão, de maneira latente, tem noticiado agravantes, em todos os seus horários mais concorridos. Por lógico, o referendo da poderosa Central Intelligence Agency (CIA) dos Estados Unidos, lastreou a discussão, até então sempre interdita, quando não silenciada. Permitida pela legislação norte-americana que autoriza a publicidade de documentos confidenciais, 50 anos depois, a notícia liberou a chave que abre cravelhas de onde o mau cheiro de memórias enterradas voltam a intoxicar o já poluído ambiente político brasileiro. Em cena, portanto, convocam-se personagens que um dia foram aproximados de salvadores da pátria corrompida e ameaçada por ideologias que não as suas. Alinhada à corrupção, outras feridas foram abertas, deixando expostos vestígios refinados de torturas, mortes, desaparecimentos, violência sexual.

Protegidos por processos censores eficientes, e pela mitificação de um período de trevas, frente ao inevitável aparecimento de “novas provas”, coloca-se em questão a integridade dos ditadores e asseclas, soldados sempre protegidos pelo controle da opinião pública. A farsa vem caindo dia a dia, e raspa-se o verniz dos pretensos guardiões incontestáveis da honestidade, da moral cidadã. Os interessados em saber sobre tal divulgação podem encontrar aparo na edição do jornal O Globo do dia 04/06/2018, ou mesmo pelo site http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2018/06/para-eua-havia-corrupcao-na-ditadura-brasileira-diz-texto-da-cia.html. Com manifestação explícita do historiador Carlos Fico se esclarece que “Durante a ditadura militar, houve muita corrupção, mas não havia visibilidade da corrupção, por conta da censura política. Então, muita gente tem a imagem de que naquela época não havia corrupção, mas isso é uma ingenuidade completa”. Frente a isso, laconicamente, sem forças para se justificar, o escândalo que macula os ideais das Forças Armadas, o atual Ministério da Defesa afirmou que “os telegramas revelados (pela CIA) são conhecidos pelo governo desde 2015 e que não há nenhum novo posicionamento a ser feito”. Finalmente, junto ao bom senso em admitir seus crimes, ratifica-se uma verdade reveladora “não há nenhum posicionamento a ser feito”. É exatamente apoiado nessa admissão que se pode perguntar: não mesmo? Do lado da sociedade civil, não deveríamos incentivar a mudança de postura e rever tais ações, pactos de anistia? Tendo derrubado um governo eleito pelo povo, Goulart, teriam os militares direito de não prestar contas públicas por atos feitos em nome da ordem e do progresso? Mas as coisas não param por aí...

Em meio a muitas outras denúncias, todas filtradas por documentos inquestionáveis, uns mais alarmantes que outros, todos de fácil acesso na internet, permite-se saudar a democracia como espaço aberto para discussões que fortaleçam as opiniões. É nesse bojo que se valorizam as retomadas sobre tratos perpetradas pelos militares e seus asseclas contra os opositores sempre colocados como suspeitos. Torturas requintadas, a “casa da morte”, a violação de mulheres, os desaparecimentos, tudo apurado, não seria matéria de reexame? Não seria saudável para a saúde nacional reconhecer publicamente os agentes hoje identificados? Vejam que há relação detalhada das responsabilidades de cada um... Segundo a Comissão Nacional da Verdade, aliás, são indicados todos os 377 nomes dos agentes do Estado que, de acordo com a categoria de atuação, são referenciados. Esta farta variedade de detalhes pode ser facilmente acessada no https://jornalggn.com.br/noticia/a-tortura-e-os-mortos-na-ditadura-militar. Mas não se para por aí. Os tribunais internacionais atentos ao zelo dos Direitos Humanos são claros em dizer que os crimes feitos contra a humanidade, jamais prescrevem. Um caso em especial tem merecido reconsideração. Os documentos da CIA são claros ao retomar o assassinato da mais expoente vítima dos maus-tratos impingidos pelos porões da ditadura, Vladmir Herzog. A Corte Interamericana de Direitos humanos, publicamente, condenou o Brasil pelo inominável assassinato do jornalista, em outubro de 1975 e, agora, sua família pede reenquadramento. Sobre o assunto, com zelo e cuidado sugere-se que se leia: https://oglobo.globo.com/brasil/corte-interamericana-de-direitos-humanos-condena-brasil-por-assassinato-de-vladimir-herzog-22851806

Por certo, os documentos da CIA são mais insistentes nos casos do final da longa noite de 21 anos, pela qual nossos pesadelos foram testados. Há, contudo algumas inquietações que clamam por respostas, além das tais revelações “novidadeiras”. Dentre tantas, cabem duas questões que não podem mais ser caladas: 1- como conseguiram os militares permanecer acobertados por anos, sem que suas torpezas fossem publicamente admitidas? 2- o que fazer agora que sabemos o suficiente para a retomada da questão? O primeiro caso é simples e de fácil enunciado: o golpe não sanou a crônica prática de corrupção, típica de democracias em construção, alicerçadas em estruturas patriarcais, patrimoniais, colonizadas e de rala participação popular. Por lógico o pacto de silêncio conciliou a vocação libertária, latente no povo brasileiro, com a cumplicidade do regime que se viu esgotado em mandos e desmandos. A segunda questão, porém, é bem mais complexa, porque mexe em revisões valentes de países vizinhos e que passaram pelos mesmos processos, O Chile, a Argentina e o Uruguai tiveram coragem de enfrentar a própria realidade e se propuseram, à luz de informações indubitáveis, sem medo de feridas reabertas, rever seu passado ditatorial, cruel e ineficiente, e condenar os mandatários por crimes contra a humanidade. Em nosso caso, pervivendo a clássica matriz que reza que no Brasil reina a tradição do impasse que, a cada problema grave, sugere o clássico deixa disso, e em nome de um pacto surdo e discutível remontamos o que João Alexandre chamou de “tradição do impasse”. Entre o que se considera estabelecido e as novas posturas, despontam desafios que convidam a revisão da Lei da Anistia: teremos fôlego para tanto? Ou é melhor deixar como está para ver como fica, mais uma vez?

Nenhum comentário:

Postar um comentário