quinta-feira, 19 de outubro de 2017

TELONA QUENTE 207


Roberto Rillo Bíscaro

No momento em que o narrador de Uma Beleza Fantástica (2016) inicia, contando a estapafúrdia gênese de Bella Brown (criada por patos, dá um tempo!), conectei-o à O Fabuloso Destino de Amélie Poulain (2001). Por pertencer à rarefeita minoria que prefere extração dentária a rever o excessivamente longo, tedioso e sacarinado filme francês, deveria ter dado stop, classificado negativamente e buscado outra coisa na Netflix. Tom Wilkinson em papel proeminente me impediu essa sábia atitude e terminei por testemunhar a sensaboria do roteiro e direção do britânico Simon Aboud, que implora pra que simpatizemos e nos emocionemos com essa picaretagem, digo, “releitura” inglesa do original francês.
Jessica Brown Findlay (a desviante Lady Sybil de Downton Abbey) é Bella, moça que parece ter caso severo de TOC e fobia de animais e plantas. Trabalha numa biblioteca, onde chega sempre atrasada, e quer ser escritora infantil. O vizinho é senhor rabugento, que trata seu cozinheiro irlandês como escravo, fazendo-o rebelar-se e procurar refúgio na casa de Bella. Ele tem 2 filhas, mas aceita cozinhar pra garota, mesmo que ela não o pague. O jardim de Bella é um desastre, porque ela tem a tal fobia, mas seu senhorio a ameaça com despejo caso não dê um jeito nisso. O velho vizinho, então, revela-se mentor que guiará Bella pelo maravilhoso mundo da jardinagem, metáfora pra seu florescimento, ao redor da qual giram todos os demais, a fim de desabrochá-la.
Uma Beleza Fantástica se vende como “conto de fadas moderno”, mas seu roteiro e estrutura são tão cheios de furos e o tema tão clichê, que é uma ofensa à organicidade e telurismo das histórias que há gerações falam sobre alguns de nossos medos (claro que não me refiro às versões da Disney, de onde vem parte da mentalidade infantiloide da produção inglesa). Protagonista é quem faz a trama andar; como classificar Bella se não faz nada? É comandada pelos homens a seu redor, que praticamente deixam suas vidas pra empurrá-la do ninho.
O roteiro usa transtornos mentais como convenientes marcadores simpáticos de estranheza, naquela vibe  pós-moderninha “é legal ser diferente”, de filme indie cuti cuti tutti frutti. Mas Bella não passa de uma songa-monga mal-vestida, que nem estofo pra escritora tem. O livro que escreve – ou vocês acham que não tem final feliz?! – é rapinagem das histórias contadas pelo vizinho. E como acreditar que um senhor que numa cena humilha gratuitamente um empregado, do nada, veja potencial numa menina que nem conhece e comece a jorrar lições de vida e bondade? E como um cidadão com 2 filhas pra sustentar aceitaria viver ao redor de Bella, sem nem salário? A fim de satisfazer o vício atual por doçura, Aboud criou história onde diversas vidas não têm significado, apenas pra justificar uma (medíocre, ainda por cima). Hipocrisia narcisista, disfarçada de coisinha fofa, ui ui, ai ai.
Não tenho dúvidas de que multidões se encantarão com Uma Beleza Fantástica, mas isso nada significa, afinal, o fato de legiões amarem junk food não quita seu estatuto de lixo.

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