quarta-feira, 4 de outubro de 2017

CONTANDO A VIDA 206

DE VOLTA AO PASSADO...

José Carlos Sebe Bom Meihy

Soube que a Câmara Municipal de Taubaté, na sessão de segunda-feira, dia 25 último, aprovou uma moção de repúdio à Fundação Santander pela exposição “Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira”. Convém lembrar, antes de nada mais, que a referida condenação foi proposta pelo Movimento Brasil Livre (MBL), organismo criado exatamente pelo grupo que advoga o sonso movimento intitulado Escola Sem Partido. Paradoxos a parte, vale dizer que a inconsistência conceitual de tal proposta extrapola o limite da ignorância suportável. Em primeiro lugar, por usar sem supor o que seja, o termo “ideologia”. Por “ideologia de gênero” – como dizem e repetem outros segmentos igualmente desprovidos de condições analíticas – supõem que haja alguma neutralidade social, que possa existir conhecimento sem construção de fatos, e que censura equivale a limite permitido por seleção do que pode ou não ser dito, ensinado, discutido. Ainda que seja elementar, cabe começar pela inexistência de vazios políticos em qualquer sociedade.
Meus caros leitores, perdoem-me por evocar Aristóteles (384 - 322 a.C.), pensador que nos idos da antiguidade clássica, nos parâmetros do nascimento da filosofia, definiu o mais básico valor da vida ocidental, alongada até nossos dias. Ao dizer que, acima de tudo, “o homem é animal político por natureza”. Aristóteles prezava a política como fundamento primeiro da democracia. Compondo um sistema de ideias, o sábio grego pontificava que a vida social se faz por meio de pactos que se assentam em noções inteligentes, não instintivas, discutíveis, elaboradas na base dialógica do direito de universal de expressão. Não há, portanto, vida social fora da política. E tudo – absolutamente tudo, de um jeito ou de outro – é política.
Convém também lembrar que a história da humanidade é um processo dinâmico, contínuo, transformador de pressupostos que se superam. Ao mesmo tempo, deve-se aclarar que a criança, ou os educandos, não são seres passivos, sem condições de reação, espécies moldáveis que um dia, sem o exercício da prática deixaram de ser manipulados. Por lógico, há limites e adequações, mas tudo dentro de circuitos que permitam combinação de experiências e informações, e que não deformem e nem inibam a beleza do conhecimento e da arte. Na mesma sintonia, cabe pensar que a crítica tem que ser exercitada desde sempre, pois não cresce juízo sem debates e experimentação. Fora desse âmbito, o que temos é a hipocrisia e a farsa que dão lugar a deformação de caráter e ao recalque. A provar isso está o sucesso da pornografia e o cinismo vestido de moral, implantado em autoridades (estas sim), comprometidas com ideologias que se fantasiam de isentas ou santas.
Além do mais, a figura do professor – daquele que como o nome revela “o que professa” – existe para propor, animar a discussão, abrir debate. Não cobrem dos educadores a postura de ventríloquos, repetidores de preceitos que sempre são organizados, construídos, políticos na direção dogmática. O resultado secular de tentativa de controle das ciências e das artes deu no que se apresenta agora: um bando de pessoas que se dizem autoridades, que não assumem o significado da escola no mundo moderno, decretando o que os educadores devem ou não indicar como matéria, vetando a livre circulação do diálogo. É preciso repetir que a “não ideologia de gênero” é política, e má, e que se inscreve no sentido mais atrasado da vivência social.
E que dizer dos que a defendem? No mínimo que são pais ausentes, tutores que delegam às escolas o dever de diálogo, mas que, ao ver o resultado se espantam. Aliás, o que se nota é a criação, nos próprios lares, de autoritarismos que se reproduzem nos ambientes coletivos. Como se ordem e obediência fossem virtudes inteligentes, o que se quer são gerações de autômatos, de jovens alienados, viciados em internet, e a cada dia mais distantes da democracia. E mais, pretende-se cidadãos que não sabem examinar a cultura porque não aprenderam o sentido da beleza e no lugar veem o que temem dentro de suas cabeças sujas. É exatamente neste rastro que advém a proposta do ensino religioso, negando inclusive que nossa constituição advoga a limpidez do estado laico. Em vez de propor nas escolas pagas pelos nossos salários disciplinas que discutam religião (sem ideologia?!) por que não se advoga o ensino de direitos humanos, meio ambiente, economia doméstica?
Mas cabe voltar a questão desta exposição citada que pode ser vista na internet https://www.buzzfeed.com/tatianafarah/veja-30-obras-da-exposicao-censurada-no-santander-cultural?utm_term=.gt8oGMqka#.mrQ9Y2EWw. Um mero giro por algumas peças da mostra nos leva à finalidade da exibição, a educação pelo olhar. Talvez, a mais representativa desse exemplo de conduta pedagógica seja um retrato feito pelo Pedro Américo (aquele o conhecido pelo quadro “Independência ou morte”), intitulado Busto de Jovem, pintado e exposto em museus desde 1889 (portanto há bem mais de um século e meio). A respeito deste retrato, o próprio catálogo da mostra diz “O caráter idealizado dessa pintura não dissimula uma inclinação para a sexualidade iotizada da juventude, cuja construção cultural está subjugada ao olhar do pintor, refletida na instrumentalização hierárquica da atribuição de erotismo do corpo. Se há um legado trazido pela contemporaneidade, foi livrar-nos do obscurantismo do olhar e atribuir uma visão crítica ao modo como vemos as imagens". Pensam que parou por aí, imaginemos a aberração do veto que implica artistas do porte de Adriana Varejão, Alfredo Volpi (sim, o mesmo das bandeirinhas), Bia Leite com um trabalho que alerta para o bullying disseminado nas escolas contra travestis. A nova iconoclastia não para aí, progride por Fernando Baril que mostra um trabalho aberto ao diálogo com outras religiões, intitulado Cruzando Jesus Cristo com Deusa Schiva. Talvez, a mais atual crítica seja a deste mesmo pintor, sob o título Halterofilista, criticando o culto excessivo ao corpo, aliás, o próprio catálogo indica a importância da crítica ao revelar que "simultaneamente, no ápice da epidemia HIV/AIDS com seu ingresso na comunidade gay, determina um longo período de estigmatização do corpo masculino como lugar da doença", explica o catálogo da exposição. O que mais poderia dizer em favor da liberação desta exposição. Vale recorrer a maior artista da arte contemporânea brasileira, consagrada em todos os espaços crítico, Lygia Clark que se representa pela obra profética intitulada Cabeça coletiva de 1975. Trata-se da simulação de uma cabeça feita com trapos de panos coloridos mostrando a diversidade que não se explica no vazio de mentes que não sabem nada além dos pecados que ocultam. Censura, mas censura de verdade deveria existir, sim, poderia haver sanções contra outras realidades, menos figurativas e mais atentas os restos humanos que se multiplicam pelas ruas, que passam fome, que não tem direito à terra, ao trabalho, e sequer a serem mostrados, desnudados como se supõem, em obras de museus.
Dei a este escrito o nome de volta ao passado. Acho, contudo, que não estou sendo leal sequer à Inquisição, pois como se sabe, os queimadores de judeus e bruxas, de homossexuais e hereges tinham mais conteúdo. 

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