quinta-feira, 6 de março de 2014

ALBINO POP

Aos 77 anos, músico cult Hermeto Pascoal agora quer ser pop

CHICO FELITTI

"Boa tarde, Hermêto", digo ao homem de 77 anos, camisa havaiana laranja e chapéu panamá, sentado na última cantina italiana que resta no Batel, um dos bairros mais chiques de Curitiba. "É Herméto ou te meto uma na cara", diz o músico que Miles Davis chamou de "o maior do mundo". Hermeto Pascoal então aperta minha mão direita com suas duas e me puxa para um abraço.
O músico poli-instrumentista, capaz de tocar flauta transversal, sanfona, bateria, violão, barriga de um porco vivo ou abelhas, é aberto como a primeira vogal do seu prenome. Evita chamar as pessoas de "João" ou "Maria" e prefere vocativos como: "campeão dos campeões", "rei" e "pessoa elegante". 
São as expressões que usa para falar com a namorada, a cantora Aline Morena, 33, e com os pais dela, que compõem a mesa do almoço de domingo. Faz dez anos que o músico trocou o Rio de Janeiro pela capital do Paraná. Por amor.
No período, diminuiu o ritmo de shows mas não deixou de compor, no mínimo, uma música por dia. "É mais forte que eu. Vem e não tem quem segure."
Depois de ter recebido convites para tocar com John Lennon, Tom Jobim, Elis Regina e Roberto Carlos e ter sido tema de mestrado, doutorado e pós-doutorado, sem nunca ter se sentado numa faculdade, ele agora decidiu ser pop.
Hermeto nasceu sem sobrenome (o Pascoal era o primeiro nome do pai) numa família lavradora no interior de Alagoas. Para proteger sua pele albina do sol, a família o poupou da colheita. "Eu ficava em casa ou embaixo de árvore. Fazia um pífano de jerimum para tocar para os pássaros. Ia pra lagoa e passava a tarde tocando água."
Aos oito, aprendeu a tocar acordeom, único instrumento ao alcance da mão. Se mudou adolescente para o Recife, onde o também músico albino Sivuca o ajudou a entrar para uma rádio. No fim da década de 1950 foi para o Rio. Em 1961, para São Paulo, onde formou o Quarteto Novo e fez parte do início da TV no país. "Como fascinava aquela figura branca, um fantasma que tocava divinamente", lembra o pianista Carlos Baldério, 86. Foi o auge da fama, diz ele. Foi para os EUA três vezes entre 1969 e 1976.
Na primeira viagem, conheceu Miles Davis, num show do próprio. "Me chega aquele crioulo bem vestido e fala pertinho de mim com aquela voz rouca. Pensei: 'Esse bicho tá meio engraçado'." Aí foram avisar ao brasileiro quem era o homem que lhe chamava de "albino louco".
Os dois ficaram amigos entre sopapos. "Lutei com ele num ringue que ele tinha em casa, com luva de boxe e tudo o mais. Durante a luta, ele ficou olhando pros meus olhos, que vão pra lá e pra cá, meio vesgos, e eu consegui dar uma na cara dele, viu, pessoa elegante?"
"Live-Evil", álbum de Miles Davis de 1970, tem duas músicas de Pascoal, que só está nos créditos como músico e não foi registrado como autor. "Acho que foi um erro, coisa de burocracia. Não foi por mal."
PARTITURA HIGIÊNICA
Após trabalhar com Roberto Carlos, ter o "New York Times" o chamando de "mítico" e formar um fã-clube de 4.000 no Japão, ele ainda não enriqueceu.
"Não sou rico porque não quero. A maior riqueza que você pode ter na vida é sua vontade de fazer as coisas, e fazer. Ganhe dinheiro, mas não seja ganhado. Coma, mas não seja comido. Foda, mas não seja fodido."
Ele diz que 2014 será o ano da retomada. Fez recentemente um show no teatro Guaíra, nove anos após sua última apresentação curitibana. "É muito mais fácil tocar na França do que em Curitiba. Ou em qualquer lugar do Brasil." Ele vai tentar.
"Nossa senhora, vamos tocar muito neste ano." Nos próximos dias, vão para Recife, onde fazem quatro shows. Seu cachê é R$ 30 mil. Ou um décimo do que pede o sertanejo universitário Gusttavo Lima.
Hermeto já teve apartamento no Rio e carro. Na última década, vendeu tudo o que tinha e repartiu entre os filhos: Jorge, Fabio, Flávia, Fátima, Fabiula e Flávio. Hoje mora na casa que os pais da namorada deram a ela. "Meu negócio é ser feliz, não fazer negócios."
Usa sua música, inclusive, como escambo. Há nas paredes da cantina, onde ele come frango com arroz, três partituras que ele deu de presente e não guardou cópia. 

Só que, de vez em quando, vem uma vontade de ser pop. Nem que seja só de piada. "Se o seu jornal quiser patrocinar, eu faço um disco de músicas bregas como as que tocam por aí. Mas sem o meu nome. Vai ser o que mais vai vender no ano. Quero provar que eu sei fazer isso se quiser, só que eu não quero."
Há dez anos, quis tentar uma incursão mais popular, que acabou abortada. "Fiz um disco de forró. Nunca saiu."
Também começou a catalogar sua obra, mas desistiu no meio. Rescindiu então, por falta de pagamento, os contratos com todas as editoras que registravam seus direitos. "A gente teria de entrar na Justiça contra cada uma delas, mas desistimos porque estávamos parando de tocar", conta Aline.
Da última vez que contaram, eram 614 gravações, todas agora livres de direitos autorais. Uma autorização assinada pelo artista em giz de cera, adereçada aos "músicos do Brasil e do mundo", libera a regravação de qualquer música sua.
E ele tem um processo criativo? Dá duas garfadas no frango, leva um crostini à boca para lhe fazer companhia, e fala sério. "Eu não pego um caderno e vou pensar no que fazer. Pelo contrário, pego o caderno e espero chegar."
O caderno, no caso, é liberdade poética. Escreve em telas de pintar. Escreve em guardanapos. Escreve agora em papel higiênico. "Pode parecer sensacionalismo, mas não é. Peguei um rolo de papel higiênico, escrevi e achei bonito. Vou escrever uma música só nesse rolo, até acabar. Quero um papel higiênico dos mais baratos, que não é muito macio, porque aí não borra."
Além de escrever a própria obra, virou também júri para músicos de todo o mundo, que lhe mandam correspondência.

"Eu respeito. Mas os caras mandam para mim música que não tem nada a ver com as coisas de que eu gosto. Eu gosto de qualquer coisa, mas o selecionado com bom gosto." Não que colocar em palavras o que é bom seja fácil como compor. "Eu comparo muito a música com a comida. Você não sabe bem porque é boa, tirante a qualidade, mas é boa. É gosto", e toma um gole de vinho. A música ambiente é "Take a Chance On Me", do ABBA.
"Não se faz música boa hoje no Brasil. É tudo a mesma coisa, e eu sou capaz de fazer isso, se quiserem."
O ouvido absoluto -habilidade que algumas pessoas têm de dar nomes a todas as notas que escutam- consegue diferenciar um lá bemol maior feito quando a mão passa no cabelo, mas não perguntas feitas ao telefone. "Como é, pode falar de novo?", pede Pascoal 14 vezes durante uma ligação de 26 minutos.
"Eu tô com muita saúde, graças a Deus. A cabeça tá boa, a vista tá boa. Tomo cuidado. Sou diabético e tomo meu vinhozinho antes de tocar, mas cerveja e outras bebidas não." Às vezes bate uma vontade de ir ao médico, mas não por hipocondria.
"Tenho 77 anos e minha cabeça está mais doida que nunca. Mais doida, mais rápida do que quando eu era mais novo. Como é que pode?! Eu não posso parar uma coisa que eu sinto. Acho que vou no médico. Vou nada, tudo tá ótimo na vida."
YOKO DOS PAMPAS
O coração principalmente. "Sou apaixonado pela Aline." A recíproca é verdadeira há 11 anos. Um mês antes de se conhecerem, ela, então professora de música e aluna de dança com 22 anos, tinha encenado em Londrina o espetáculo "Hermeto em Voz para Dançar", em que bailava músicas dele, então com 66.
"Na época, eu não admitia que usassem minha música para dançar", diz ele, que não viu a encenação. Semanas depois, era ela na plateia dele, em um workshop. A aula-show começou com um desafio: "Quero ver quem tem coragem de ser o primeiro a subir no palco pra fazer um som comigo". Foi ela, levando uma sacola com chaleira, microfone e um cano de construção, que apontou para o rosto do músico e usou para declamar uma poesia cantada, que tinha feito em sua homenagem.
Por causa da fotofobia causada pelo albinismo, ele achou que o cano poderia ser uma arma. "Tomei um susto com aquilo quase no meu olho." Passada a adrenalina, tocaram "Montreux" juntos. A música é um dos maiores sucessos da carreira de Pascoal, composta para a cidade suíça que sedia um festival de jazz para ao qual ele é convidado vez sim outra também.
O veterano elogiou o empenho da jovem e disse que, quando ela quisesse, poderia ir gravar com seu irmão, o compositor Zé Neto, no Rio. No dia seguinte, ela estava de malas feitas no aeroporto. 

Hermeto estava viúvo havia dois anos da mulher com quem tinha ficado 46 anos. Apaixonaram-se "no segundo dia", e da união do alagoense de Olho d'Água das Flores com a gaúcha de Erechim já nasceram dois CDs e um DVD.
Músicos e fãs comparam Aline com Yoko Ono, por ela ter tirado o compositor de onde ele tocava projetos. "Ela afastou o maestro do Nordeste", diz um grupo de discussão na internet. Um percussionista que tocou com Hermeto no Rio e pede para não ser nomeado, lamenta a ida do músico para Curitiba. "É transformar um homem cheio de vida num ermitão, enfiado numa casa isolada e sem estar rodeado de gente, que é como ele sempre esteve."
O músico ri das frases. "O mesmo grupo de quando eu saí do Rio é o de hoje. Eu continuo me relacionando com todo mundo, nada mudou." A mulher define: "Nossa ligação aqui na terra é espiritual. Se é por sexo, não dura muito. A gente não sabe como vai ser daqui para a frente. E se eu quiser ter uma família?"
A figura que parece um Papai Noel de férias nos trópicos ri. "Dá uma olhada para mim, quem vai resistir?", diz enquanto passa as mãos pela barriga, ao som de "I Feel For You", de Chaka Khan.
Hermeto ainda tem um sonho. Quer alugar um helicóptero. E não é para fazer som com as hélices. "Quero pegar as mais de 3.000 músicas inéditas que tenho e jogar lá de cima, como se fossem folhas. Não é brincadeira não."
 http://www1.folha.uol.com.br/serafina/2014/02/1415484-aos-77-anos-musico-cult-hermeto-pascoal-agora-quer-ser-pop.shtml

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