quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

CONTANDO A VIDA 68

Às vésperas do Carnaval, nosso cronista-folião veste fantasia de índio e entrelaça nossa maior festa popular com Veneza, os arlequinais modernistas de 22 e até com Tom Mix. Isso sim é globalização antropofágica!


CARNAVAL, desenganos...
José Carlos Sebe Bom Meihy
 Para Carlos Bakota e Matt Shirts


Por diversos motivos tenho intensificado opiniões sobre nosso carnaval com um querido amigo, inquieto norte-americano, Carlos Bakota, ex-professor da Universidade de Indiana, ex- diplomata de carreira e eterno amante do Brasil. A tal ponto esse instigante personagem se interessa por nossa cultura que o chamo carinhosamente de brasilianeiro – mescla de brasilianista e brasileiro. Carlos é um desses tipos curiosos que atualiza a inquietação antropológica da parcela dos bons acadêmicos norte-americanos que buscam conhecer nossa essência cultural e não apenas analisar dados objetivos, diagnosticadores do progresso. E como o tópico que nos ata no momento é o carnaval, devo dizer à guisa de introdução que os comentários que faz exibem laivos dos festivais antropofágicos descritos pelos nossos vanguardistas. Sim, suas opiniões nos servem como alimento de “inimigos” que devoramos para nos fortalecer com a “carne adversa”. O tema da antropofagia, aliás, é boa chave para abrir a caixa de temas que revisamos.
Um dos questionamentos mestres do colega diz da origem indígena do nosso carnaval, ou do “repontamento” mais recente gerado pela identificação da presença de fantasias de índios. Retomando conversas amanhecidas, em particular envolvendo um amigo que um dia foi nosso aluno, Matt Shirts – o mesmo que escreve no Estadão – ambos concluíram que tal presença poderia derivar da insistência dos modernistas paulistas de 1922 em fundamentar nossa identidade como se indígena fosse. Na verdade, poucos sabem que a Semana de Arte Moderna se deu exatamente naquele fevereiro carnavalesco. Mas, ainda que a evocação aos selvagens brasileiros que teriam devorado o Bispo Sardinha funcionasse como uma das alegorias, a inspiração carnavalesca prevalecente no imaginário dos intelectuais era a da festa veneziana, com a sagração do triângulo colombina, pierrô e arlequim. Vale lembrar, por exemplo, que as malhas com losangos serviram de cenário para uma proposta que, na realidade, traía a vocação nacionalista, de valorização do selvagem, que foi se desdobrando lentamente. Com esse contra- argumento, fica estabelecido o dilema que nos desafia. Os índios carnavalescos crescentemente alegorizados no carnaval são frutos dos impulsos dados pelas propostas dos modernistas? Pensemos. O padrão de fantasias comum é dos Comanches (Apaches e Sioux), ou seja, dos chamados “índios brancos”. Pouco, quase nada de exaltação à nudez dos nossos. Mas, se a representação se liga ao imaginário norte-americano, o que pensar da tradição nacionalista do nosso carnaval? Convém ressaltar que apesar da originalidade e brilho do modernismo paulistano, ele estava muito longe de atingir as massas. A Semana de Arte Moderna era revelação isolada promovida pelos “jovens turcos” da elite paulistana. Considerando a sofisticação dos argumentos, os textos eram mais destinados ao nivelamento dos manifestos modernistas internacionais, em particular aos italianos. É verdade que carnavalescos como Fernando Pamplona exploraram temas como “O descobrimento do Brasil”, mas a mostra era muito mais devotada ao padrão europeu, com corte, desbravadores, religiosos, do que com os próprios índios. Mas, então, como teria começado essa “tradição” do índio Comanche no Brasil? A hipótese que levanto corre por conta do sucesso do cinema, em particular dos filmes de cowboy. Ainda que pouco notadas, as fantasias de “mocinho” também compõem representações carnavalescas, mas há um filme que merece atenção, não apenas pelo sucesso de público: “Mr. Mix at the Mardi Gras” com o prestigiado ator, popularíssimo no Brasil, (inclusive citado no sítio do Pica-pau-amarelo e em músicas recentes como “Berenice” de Jorge Bem Jor). É incrível supor que Tom Mix seja responsável por uma das relações mais estapafúrdias da troca de cultura entre o Brasil e os Estados Unidos, mas não resisto aproximar o Mardi Gras de New Orleans ao carnaval brasileiro. E tudo pelo cinema.
Mas, minhas conversas com Carlos e Matt também tangem outros aspectos, e entre eles a mitificação romântica do financiamento das Escolas de Samba. Consagrando o princípio que “o pobre trabalha o ano inteiro, pra vestir a fantasia de rei, pirata ou jardineira” (Vinicius e Jobim), muitos ainda acreditam que escola de samba é uma abstração do capitalismo. É preciso gritar que tais agremiações dependem de quatro fontes de financiamentos: 1- patronos, banqueiros do Jogo do Bicho; 2- ajuda do estado (prefeitura do Rio de Janeiro); patrocínio de cidades, estados, países (este ano, por exemplo, Angola está financiando grande parte do desfile do GRESS Vila Izabel), e, 4- da participação de “pessoas de fora”, ou turistas e personalidades individuais que financiam suas fantasias de luxo. O bom de tudo é que esse tipo de diálogo carnavaliza o debate cultural e mais que tudo nos faz refém da alegria de discutir aspectos pouco valorizados no debate sobre nossa identidade. E como é bom pensar a globalização carnavalizada...    

Nenhum comentário:

Postar um comentário