domingo, 31 de janeiro de 2010

NÃO TINHA LÁPIS DE COR

Domingo especial este: temos outro relato de uma mulher com albinismo. Desta vez foi a Emília quem gentilmente cedeu seu tempo – que sei é muito corrido – pra compartilhar suas vivências conosco.

Bem vinda ao blog Emília e esteja à vontade pra escrever o que quiser, quando quiser. Basta mandar que eu publico.

Sempre lembrando aos demais albinos; por favor, relatem suas experiências. Vocês não imaginam o que bem que faz pra nós mesmos e pra quem lê.

Vamos à narrativa da Emília:

“Não tinha lápis de cor.”
Por Emília Vitória da Silva

É muito comum, quando ando pelas ruas, vielas, galerias, praças e becos, as pessoas ficarem me olhando. Os adultos de soslaio; as crianças, em sua sinceridade lindamente transparente, de modo mais incisivo.
E esta beleza da sinceridade infantil é mais forte quando vem junto com uma curiosidade pura. Certa vez, ao visitar uma amiga, mãe de três filhos, um deles me perguntou: “porque suas sobrancelhas são brancas?” Então, respondi – de pronto, pois a resposta já havia sido pensada há muito tempo: “porque quando Deus me fez, não tinha lápis de cor”. Não sei se esta metáfora satisfez a curiosidade daquela criança, mas talvez seja esta a melhor forma de encarar a questão do albinismo. É simples: na hora, faltou cor, só isso.
Claro que a coisa não é tão simples como deveria ser; tem sempre um ser humano pensante, com conceitos preconcebidos e sem informação, que complica nossa vida.
Um dos fatos desagradáveis que aconteceu comigo foi no meu primeiro dia de aula, quando a professora, despreparada é claro, teve a infeliz idéia de me colocar sentada bem rente ao quadro-negro (ou lousa para alguns), ao perceber que não conseguia enxergar o que ela escrevia.
E houve outras situações desagradáveis, quando recebia apelidos depreciativos ou era alvo de brincadeiras pejorativas. Mas isto tudo é simplesmente fruto da ignorância, imaturidade e falta de amor próprio (sim, quem não se ama não sabe manifestar amor e tolerância para como os outros) daqueles com quem eu convivia.
De certa forma, isto me deixava magoada, constrangida, insegura; mas a minha curiosidade e espírito interativo sempre falaram mais alto e, desde o início, procurei saber do meu problema e compartilhar o que aprendia com as pessoas; explicava o que era albinismo, que não enxergava direito e que não podia tomar sol. Por vezes, acho que cheguei até mesmo a ser muito incisiva e enfática, colocando minha condição física como explicação para tudo que fazia ou deixava de fazer. Certa vez, uns amigos até me disseram que eu exagerava, que superdimensionava o fato de ser albina. Refleti um pouco sobre o caso e até baixei o tom, mas nunca deixei de assumir que era uma pessoa albina.
Esta minha postura por certo anulava as atitudes desagradáveis das quais era alvo. Contudo, apesar de situações desagradáveis, muitas vezes até depressivas, por que passei na minha trajetória de vida, o que gostaria de trazer e transmitir para os outros, é uma mensagem de gratidão e superação.
Gratidão por crer que todas as dificuldades por que tenho passado por ser uma mulher com albinismo só serviram para melhorar a mim mesma como pessoa e me fazer crescer em espírito. Reconhecer minhas limitações e buscar o apoio dos outros é muito salutar para minha evolução espiritual.
Superação porque tenho também a absoluta certeza de que se cheguei onde estou – no aspecto afetivo, intelectual e profissional – foi com muita luta e determinação; sempre procurei não esmorecer com as adversidades e buscar caminhos alternativos que pudessem me levar a meus objetivos. É claro que muitas vezes contei com o companheirismo e generosidade de alguns colegas e amigos, o que retribuí sempre com simpatia e sentimento de agradecimento.
Enfim, ser albina não me impediu de estudar, de fazer amizades, de conhecer pessoas, de namorar, de trabalhar, de viajar, de viver!! Muito pelo contrário, me fez um ser mais forte, mais aguerrida, mais audaz e, certamente, uma mulher mais madura...
Agradeço muito a Deus por, mesmo sem ter lápis de cor, ter me dado a vida, uma verdadeira dádiva que a cada dia me faz mais feliz.

Dedico este relato a todos aqueles amigos que sempre me ajudaram a vencer minhas limitações, a meus familiares, por serem meus companheiros de caminhada, por aprenderem e me fazer aprender e, finalmente, ao meu “amigo” Negi da Luz, por me fazer afundar com suas palavras, num dos momentos mais lindo da minha vida... obrigada a todos!!!

Falei para o Roberto Bíscaro que gostaria de anexar um vídeo de música a este meu relato. Poderia ser algum com a Marisa Monte ou com o Djavan, que adoro. Mas vou postar este com as Chicas, com uma música que tem uma letra fantástica, pelo otimismo que transmite. Aliás, a autora da letra se chama Isadora Medella, componente do grupo e que, além da bela e poderosa voz, canta sorrindo... é o máximo vê-la cantando!! É assim que todo mundo deveria encarar a vida – sorrindo, porque “a vida é boa... a vida é boa...”

Olha
Isadora Medella
Olha a luz que vem de lá

Veja a chuva já passou
Espera que a vida vai melhorar
Reza pra Deus Nosso Senhor
Jura que vai me esperar

Volta, vamos recomeçar
Planta amor que amor vai dar
Viva a vida, vida...
Roda nesse mundo carrossel

Brinca solta pipa olha pro céu
Muda de lugar pra ver além
Chama o irmão pra vir também
Grita, que é pra todo mundo ouvir

Ouve, eu não vou mais repetir
Toca a canção da esperança
Avisa, vou voltar a ser criança
Pega a estrela que caiu

Leva onde haja a escuridão
Pede pra miséria acabar
Vamos todos repartir o pão
Luta pelo seu ideal

Força, vai adiante até o final
Voa pra sua liberdade
Canta que a vida é boa.....
A vida é boa....

3 comentários:

  1. Conheço a Dra Emília por ser a irmã de uma de minhas melhores amigas, também albina, a Maria José. A Emília é essa pessoa fantástica, brilhante, nos dois sentidos!
    Amei seu texto, Emília! Parabéns!

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  2. Washington de Lima Pereira24 de abril de 2010 às 17:45

    Parabéns Emília, pelo seu desprendimento e coragem, ao comungar com as pessoas, num site importante como esse, fatos que marcaram sua trajetória de vida.
    Acredito que você ainda vai longe, minha amiga.
    É um privilégio poder conviver com você.

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  3. Nossa, Dr. Emily falou e disse! É incrível como o animal humano consegue revelar esta sua origem de formas as vezes tão simplórias. Tem coisa mais primitiva que se classificar ou esteriotipar o outro por seu corpo ou sua aparência?
    A Emília além de uma pessoa ótima, é uma profissional excelente e muito competente. Que sabe tratar todos de forma cativante.
    Deus não tinha lápis de cor, mas deu uma caprichada no brilho!

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