domingo, 9 de dezembro de 2018

SUPERANDO AS MULETAS

De muletas, mas campeões mundiais

A 4 de novembro, a equipa angolana de futebol para amputados foi campeã mundial no México. Voltaram a Luanda e agora são vistos como motivadores de orgulho.
O maior estádio da Cidadela em Luanda já não é o que era, agora inunda quando há chuvadas - no relvado e à volta do recinto onde proliferam cartazes de todos os negócios, da venda de jantes a seitas religiosas (Igreja do Tabernáculo)... Foi inaugurado nas vésperas da independência e foi lá, em 1977, que a seleção angolana, os Palancas Negras, fizeram o primeiro jogo oficial, ganhando a Cuba.

Para a história ficou o facto de Dinis, o Brinca na Areia, falso lento da ala esquerda, que brilhou no Sporting e na seleção portuguesa, ter jogado pela primeira vez, já em fim de carreira, pelo seu país. E, ainda, o facto de os adversários não terem podido utilizar aquele que porventura foi o melhor futebolista que já jogou pela seleção de Cuba: o angolano França Ndalu, que estudara em Havana e, à data do jogo, já estava perto dos 40 e tinha mais que fazer: era o general dos generais, o mais prestigiado militar da FAPLA. Da guerra da independência, Angola passava à guerra civil e não ia muito em futebóis.

O Cidadela agora moribundo foi substituído pelo estádio da Camama, mais longe do centro e mais pequeno (50 mil espectadores contra os 68 mil do mais velho). A ilusão do tamanho até chegou a ofuscar a Cidadela. Na passagem de ano de 2013, a seita IURD fez lá uma cerimónia: "Vigília da Virada - Dia do Fim." Nas bancadas ergueu-se um luminoso e enorme "F" a celebrar a palavra principal do slogan. Duplo exagero. Meteram dentro do estádio 250 mil pessoas e o fim não foi para todos: morreram 13 pessoas e 120 ficaram feridas por um atropelamento humano.

Há dias, porém, fui encontrar um milagre no velho estádio. Sob as suas bancadas fica a sede do Comité Paralímpico Angolano. Lá dentro há a mais bela das fotos: a albina Rodé Fernandes, cega e esplendorosamente alva, campeã dos 400 metros, corria ao lado do seu acompanhante, o negro Alain Baptista. Mas o milagre de que falo não era tão estético, era de pura determinação.

Deixem-me localizar o assunto: falo de Angola. Um dia vi, numa estrada de leste, um camião com a carroçaria cheia de uma carga de muletas. Eram daquelas com enchumaço protegido por napa garrida, para se pôr sob as axilas. Vi a camioneta sinistra durante a guerra civil.

Nessa altura, Angola era a campeã das muletas e da sua principal causa, as minas. A mina antipessoal é a mais cabra das armas, só traz a pólvora necessária para levar um membro, não mais. Do inimigo não se quer que morra nem mesmo que fique sem duas pernas. Só uma, para que ele passeie a sua desgraça. Tão famosa ficou por esse tamanho drama, que Angola foi visitada várias vezes pela princesa Diana.

Então, neste assunto, Angola era uma desgraça e uma comiseração. Ora, a minha ida o estádio da Cidadela foi para ver como das suas muletas um punhado de jovens angolanos fizeram uma inspiração nacional. A 4 de novembro passado, a equipa angolana de futebol de muletas sagrou-se campeã mundial em Guadalajara, México. Regressaram a Luanda e foram surpreendidos não só pelo carinho mas porque foram vistos como motivadores de orgulho.
Na verdade, o futebol de que falo não é com muletas, daquelas de se apoiar numa axila, mas de canadianas duplas, leves e capazes de dar um andar rápido. Joga-se a sete, num campo mais pequeno (60x40 m) e balizas mais pequenas - os guarda-redes têm as duas pernas mas um só braço. E a modalidade surpreende pela rapidez e jeito com que pode ser praticada. À porta da sede do Comité Paralímpico havia uma gigantesca foto dos seus campeões.

Encontrei-os com penteados exóticos como os de futebolistas comuns, havia riscas depiladas, cabelos pintados de louro e até um de rosa. As caras eram mais duras do que as habituais em recém-campeões - o defesa Celestino Elias, eleito o melhor do torneio, escondia sob as suas tranças caprichadas o olhar zangado que eu já vira numa entrevista na TPA, a televisão oficial. Havia militares feridos em acidentes e camponeses amputados por minas perdidas. Não sem razão, a federação foi fundada no Moxico, em 1992, onde, quatro anos antes, eu vira o camião das muletas.

O defesa Neves Sonhe, do Moxico, resumiu o início do seu drama: "Perdi o membro, gostava de jogar e a vida acabou." O treinador Augusto Baptista conhecia o caminho das pedras: "O desespero é etapa inevitável." Ele quando treina olha sempre para as bancadas. Uma cara desconhecida e com muletas levava-o a fazer a aproximação... O convencimento passa pelo abandono da negação: "Tens de aceitar." Aponta-me a equipa: "A esses podes chamar-lhes deficiente, eles sabem que lhes falta qualquer coisa." Daí a tornarem-se campeões em Guadalajara foi um passo.
Há quatro anos, a equipa angolana já tinha chegado a vice-campeã, contra a Rússia. Campeão do pensamento positivo, o treinador Baptista avisou os jogadores, antes de partir para o México: "O patamar do segundo lugar já está garantido, mas podemos ir mais longe." A Rússia, tendo perdido nas meias-finais com a Turquia, tornou o dilema resolvido: "Só podemos ganhar." A final com a Turquia estava empatada depois das duas partes do jogo, de 25 minutos cada. Empate ainda no prolongamento. Foram a penáltis. O guarda-redes Jesus Mateus disse ao treinador: "Coach, fica calmo. Uma vou defender!"

Os marcadores das duas equipas enganaram os guarda-redes até à última rodada, 4-4. Na quinta, Jesus Mateus cumpriu e, a seguir, o avançado Heno Guilherme desfez o empate. Campeões! Ninguém atirou as muletas ao ar, todos quiseram libertar-se correndo - todos como o órfão Eder em Paris, depois do famoso golo na final do Europeu, não querendo abraços, só sentirem-se completos.

Contei ao Laurindo, do Huambo, que tem paralisia numa perna, que na minha infância havia muitos miúdos com poliomielite: "O melhor jogador de futebol na minha escola primária era um mulato com perna bamba mas dura." Ele sorriu, Laurindo - pudera, um campeão! - era também dos deficientes tão eficientes que encaixam as palavras.

Ao lado, o médio Hilário, de Benguela, fazia jus ao nome, passou a entrevista com um sorriso. Perdera a perna direita aos 10 anos, saltando a brincar do comboio. Perguntei-lhe se gostava de ver o futebol dos com duas pernas. Que sim, nunca perdia um jogo do Petro, quando o seu clube de coração ia a Benguela.

No dia seguinte, houve a receção no Huambo, a segunda cidade do país e berço de cinco dos campeões. Foi povo e foi governadora da província, tudo derreado pelos heróis de muletas. No seguimento da reportagem da TPA, a cadeia televisiva nacional, o noticiário foi até à vizinha Caála, onde o Recreativo treinava para um jogo do campeonato. A câmara focava o relvado, em que entrou alguém que disse alguma coisa aos jogadores que treinavam e apontou para a bancada. Os jogadores olharam, desmobilizaram do treino e correram para a bancada.

A imagem mostrou os campeões de muletas, eram eles que estavam na bancada, a serem cercados pelos profissionais do Girabola, o campeonato maior do futebol angolano. Houve abraços e selfies. Não posso garantir que Hilário, o campeão desastrado com comboios, estivesse lá. Mas gostava que sim, e um dos futebolistas com duas pernas lhe tivesse pedido um autógrafo. O Recreativo da Caála treinava-se para jogar dias depois com o Petro e o médio Hilário Cufula, o campeão de muletas sempre sorridente, merecia ser homenageado pelo adversário.

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