quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

CONTANDO A VIDA 260



CACHORRADAS...

José Carlos Sebe Bom Meihy


Para João Coroa.



Fim de ano... Que escrever? Sentei-me decidido a não falar de política e de perspectivas ideológicas. A ideia era fugir de temas que tanto atormentaram o combalido 2018 coletivo. Também queria esquecer o incêndio do Museu, a divisão do país, o fracasso do meu time de futebol, conjugado com o vexame da Seleção, a morte de tantos amigos e ídolos de todas as áreas, o tratamento injusto a mulheres, gays, índios e negros. Tinha certeza de evitar a greve dos caminhoneiros, os dramas – tão tocantes – dos exilados, imigrantes, deportados, e deixar de lado o aquecimento global e os novos/velhos quadros mandatários. Queria apagar o debate sobre o estado laico, a descriminalização do aborto, os efeitos da judicialização dos três poderes e o amargo espetáculo multiplicador dos moradores de rua. Mariele, nem pensar... Presidia em mim a certeza de que a exaltação reversa, a epifania dos bons momentos, que certamente existiram, seria pouca matéria para emblemar a fatalidade de um calendário que, paradoxalmente, parece ter passado rápido demais. Vapt-vupt, e o ano acabou: feliz ano novo, adeus ano velho...

Houve, porém, um caso que me chamou a atenção e atiçou argumentos que se abraçaram para uma conversa sobre o acabamento desta jornada que, de forma estranha, mistura, em plena primavera, dias de calor intenso e frios repentinos. Sim, há alguma coisa que vai além dos mistérios climáticos e sociais: o tratamento dado aos animais, no caso específico, aos cachorros. De saída, devo dizer que estou comovido com a morte (quase escrevi assassinato) de Manchinha, o cãozinho agredido com uma tacada de ferro no pátio do Supermercado Carrefour, nas imediações de São Paulo. Eu que leio jornal com tesoura na mão, fiquei surpreso com a pequena montanha de recortes feitos sobre o assunto. Não foi sem sentido que me vi motivado a tal pena, pois poucos dias antes também me comovi com a fidelidade elegante do cão de guarda no funeral do presidente Bush-Pai naquele adeus derradeiro. Decidi considerar ambos, e por eles medir meus sentimentos sobre o tempo que se encerra. 

De forma gostosa, declinei lembranças de outros cachorros que afinal compuseram a mitologia bichana que anima meus sentimentos por animais. O primeiro que me alentou foi Marley, o labrador descrito no livro “Marley e eu” (que depois virou filme), de onde guardei uma frase preciosa “Quantas pessoas fazem você se sentir raro, puro e especial? Quantas pessoas nos fazem sentir extraordinários?”. Não teria como deixar de lado as sessões televisivas sobre “Rin Tin Tin” que, desde os anos 1950, animaram o tema “companheirismo”. Certamente, o filme “Beethoven” emocionou o mundo, perdendo, contudo, em enternecimento para o insuperável “Hachiko”, de 2009, película que contava a história de um animalzinho que, mesmo depois de quase dez anos da morte do dono, ia diariamente espera-lo na estação de trem. É lógico que “A Dama e o Vagabundo”, bem como “Os 101 Dálmatas”, não deixaram mais pobre a ladainha de loas. 

Nem vou contar minha história pessoal com os cachorros que tive; apenas permito-me mencionar uma passagem recente que adoçou um reencontro com velhos amigos. Na ocasião, festiva, o colega de juventude evocava um presente que lhe dei, um filhote que além de manter o nome que decidi, “Tango”, se tornou melhor amigo do pai, que havia perdido seu antigo parceiro bichano. Mesmo que sem que os demais notassem, tive que mudar o assunto, pois as lágrimas cabíveis não combinariam com o jantar. Desse embargo interdito resultou um sonho que tive com minha última “cã”, Susy que tanta dor provocou quando a perdi.

É lógico que cabe menção aos cães bravios, aos amedrontadores cachorros maus como o mitológico Cérbero vindo do submundo (de onde adveio a referência ao diabo como cão), mas isto sempre esteve longe de anular a fidelidade de um Argos, amigo de Ulisses, e único a reconhecê-lo depois de 20 anos na guerra. Quero agora falar de Manchinha, um “sem dono”, desses que perambulam por aí em busca de sobrevivência. Indo de cá para lá, sua vida – nem triste, nem alegre – se fazia parte de uma história de valor menor, como alguém que é, no máximo, complemento rotineiro de uma paisagem comum. Não se pode definir com precisão de onde viera, qual sua trajetória, mas é certo que chegou ao tal supermercado em busca de algum resto. Entrou, olhou, foi espantado por zeladores das ordens sanitárias. Até aí, tudo bem, ainda que discutível, pois, por certo era “um cão sem dono”. O que é desalentador é a forma com que foi tratado depois do escorraço. Zeladores de regras o espantaram, mas na pacatez dos desalentados, Manchinha caminhava em marcha lenta. Presumo que sabia de seu destino de continuidades. E foi assim, até que um obstinado pegou uma vergo e o atingiu com convite à morte. Nossa!... As cenas que se seguiram foram cruéis demais. “Desumana” seria adjetivação cabível?

Mas qual seria a lição a ser tomada. Além da solidariedade que se avolumou, uma multidão em nome da justiça tem bradado, e, pelas redes sociais, se impôs. Lembrei-me de Waldick Soriano no segundo verso da cantiga brega “Eu não sou cachorro, não”: Tu não sabes compreender/Quem te ama, quem te adora/ Tu só sabes maltratar-me/ E por isso eu vou embora. E Manchinha se foi. Adeus Manchinha. Feliz ano novo...
 

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