quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

TELONA QUENTE 184


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Dossiê Madame Bovary

Roberto Rillo Bíscaro

Desde reler Madame Bovary, deu vontade de constatar o que cineastas e roteiristas de TV aprontaram com o clássico de Flaubert. Claro que não se tratou de ver qual versão é “mais fiel” ao livro, porque essa suposta semelhança só pode ocorrer no nível mais básico da fábula, afinal, são modos distintos de expressão. Mas, tinha curiosidade de ver quanto do maciço caráter de sátira social, havia sido transposto nas adaptações. Não muito, parece que o pessoal adora mesmo um drama sobre “mulheres decaídas”. 


Em 1949, Vincent–Pai-da-Lisa (quem?)-Minelli fez uma adaptação em branco e preto, defendendo a liberdade de expressão, poucos anos antes de o macarthismo destruir carreiras em Hollywood, daqueles que ousaram expressar-se. Aproveitando o litígio judiciário causado pelo romance, o filme coloca Gustave Flaubert como narrador, defendendo seu livro e heroína, colocando-a como fruto duma sociedade que a ensinou a gostar de Cinderela, a valorizar o amor idealizado em detrimento da vida real, mostrada como monótona pelos romances. Minelli criticando a própria indústria de cine, que sistematicamente faz isso desde sua criação. Tais discussões tornam a película provocadora. A cena mais marcante é a do baile, onde Emma rodopia desvairada com um nobre, antes de passar vergonha com o marido bêbado; Minelli numa cena mostra o que é o bovarismo. Roteiro é diferente de livro, então, diverte ver a criação da cena onde o arsênico é apresentado pra que o público não o tenha depois como conveniente demais, mas desaponta que Charles tenha que ter ganho mais consciência e até certo altruísmo, quando desiste de operar o pé torto de Hyppolite ou saque as infidelidades da esposa. Flaubert era mais cortante do que a cultura de massa quase 100 anos depois da publicação, mas mesmo assim, vale a pena ver.

Em 1975, a BBC adaptou o romance pras telinhas, em 4 capítulos. Dadas as condições técnicas e dificuldades econômicas inglesas da época, quase tudo se passa dentro de poucos cenários, o que não é de todo mal, porque representa o confinamento sentido pela personagem. Embora nesta versão o espectador saiba que Emma é o segundo casamento de Charles, não fica claro que ele tenha casado com a primeira mais pelo dinheiro. Além disso, ele é tão bonzinho e bobinho, que a esposa passa por megera mal-agradecida. Francesca Annis é minha Emma Bovary favorita. Você pode ver tudo no Yutube sem legenda.

Dado o pedigree de Claude Chabrol e o filme ser da terra de Flaubert, a adaptação de 1991 pode ser bem pertinente e é realmente a melhor que vi. Mas nem o crítico da burguesia escapa da armadilha de individualizar a pequena tragédia da madame. Como nas demais adaptações, a eliminação do antecedente das famílias dilui o sentido de crítica coletiva que tem o romance, sem dizer que o aspecto de ironia farsesca do narrador vai todo pro brejo, ainda que Chabrol estivesse ciente das limitações da forma cinematográfica ao incluir um narrador que aparece em momentos onde a consciência de Emma precise ser penetrada. Por que nenhum roteirista cria um Charles Bovary matizado? Flaubert não o fez tão vítima: e o primeiro casamento por dinheiro, onde fica? Não fica, porque adaptação alguma mostra os capítulos iniciais. Parece que a cultura ocidental, em sua maioria, tem dó de corno macho? Pelo menos o filme de Chabrol narra os destinos da pequena Berthe e de Homais, 2 das grandes maldades de Flaubert.

Em 2000 a BBC fez mini de 2 capítulos, exibidos primeiro nos EUA. Fãs de Downton Abbey gostarão, porque Charles Bovary é Hugh Bonneville, o Lord Grantham. Trilha sonora bonita, a mediocridade e as limitações de cama de Charles estão lá, inclusive a desastrada operação no pé de Hyppolite e até cena inicial mostrando que Emma era fogosa demais pra vida num convento. O que faltou foi explicitar que Leon e Rudolphe não a amavam de verdade, como dá a entender o roteiro. Também parece que Emma era satisfeita com os casos enquanto duraram. Não, provavelmente nada seria capaz de aterrar o poço sem fundo de carência emocional que era essa filha de campesinos que ousou ser classe-média.

E eis que em 2015 foi lançada a primeira releitura roteirizada e dirigida por uma mulher, Sophie Bartes. E que decepção! Madame Bovary é inegavelmente belo em cinematografia e vestuário, mas a norte-americana deve ter visto produção britânica demais, pois troca o excelente baile na casa do visconde por uma caçada (depois dizem da “sensibilidade” feminina, sei...) na propriedade dum marquês, que depois vira amante de Emma, eliminando Rudolphe da trama. Tem hora que é lento demais, tem hora que é tão de repente que nada explica.  Invisibilizando as demais personagens que não fossem do núcleo familiar direto dos Bovary (que nessa versão nem filha tem), Bartes individualiza a história de Emma, quando na verdade, o buraco em Flaubert estava mais embaixo, porque impiedosamente expõe todos ao ridículo. Se dá bem quem sabe esconder ou usar a mediocridade/sem-vergonhice a seu favor. Decisões como dar a entender que o casamento com Charles foi arranjado pelo pai – o filme começa com uma subserviente Emma se casando – tornam-no só mais uma película sobre infidelidade, onde a noção de Realismo se traduz em filmar vestido com barra suja de barro. Bartesinha não entendeu nada do livro, né fia? A não ser pra fãs de Mia Wasikowska, a Sophie da temporada primeira de In Treatment, essa Madame Bovary tem depressão a oferecer e não a ebuliente histeria tão bem descrita pelo narrador discreto flauberiano.

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