sexta-feira, 28 de outubro de 2016

PAPIRO VIRTUAL 113

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Roberto Rillo Bíscaro

Um amigo historiador convidou-me pra falar sobre o romance fundador do Realismo, Madame Bovary. Passada a surpresa – jamais fui francófilo, embora admire a produção cultural do país – de não ter sido escalado pra discutir Frankenstein, aceitei e ao fazê-lo obriguei-me a reler o magistral trabalho de Gustave Flaubert, que conhecia da tenra juventude e depois de inúmeros textos teóricos.
Fui inquirido mais de uma vez sobre o porquê de não dar muita bola pra produção contemporânea. Nada contra, até resenhei 2 romances brasileiros deste século: A Chave de Casa, de Tatiana Salem Levy e O Filho Eterno, de Cristovão Tezza, dos quais bastante gostei. Sem contar minhas escapulidas pra literatura policial escandinava, que leio pra esquecer o começo antes de encerrar a leitura. Mas, os autores do século XIX me explicam tanto do mundo atual, que não tenho coragem de abandoná-los. Relendo a ascensão (?) e queda da alienada e insaciável (sem saber direito de quê) pequeno-burguesa francesa reconheci nosso mundo onde a propaganda e a sucessão de modelos de telefones tentam preencher um mal-estar que Rivotril algum conserta, até porque o medicamente dá lucros fabulosos, como os telefones (ou mais?).
Publicado com escândalo em 1857, quando a França vivia o Segundo Império - cujo mobiliário Sartre escolheu pra sua peça Entre Quatro Paredes, que se passa no inferno – Madame Bovary trouxe novidades que hoje podem passar despercebidas. Pegar uma mulher da província, mostrar-lhe o tédio e a histeria, numa trama desprovida de grandes eventos ou personagens ilustres já teria sido bastante, mas Flaubert feriu bem mais fundo. Ele sexualizou essa mulher, saqueou a pompa narrativa dos romances Românticos e fez o narrador “desaparecer”, deixando as personagens literalmente sós num mundo sem Deus, que não conseguem compreender, ou quando tentam, é apenas superficial ou idealizadamente. Emma é antepassada das irmãs russas que sonham desesperadamente em ir pra Moscou, que idealizam, como Emma e seus amigos o fazem com Paris, onde tudo seria mais arrojado e moderno.
Literariamente, Flaubert está detonando o Romantismo, afinal, parte das minhocas na cabeça de Emma é inculcada pela leitura desenfreada da vasta produção de romances melodramáticos e rocambolescos. Chapéu seja tirado pra Jane Austen, que há meio século demolira os exagerados ardores Românticos. E olha que vivia isolada nos confins da Inglaterra.
Mas, os romances não saciam Emma, essa filha de campesinos, que sempre sonhou com vida excitante, especialmente depois que vai a um baile na casa dum nobre. Ah, as raízes da ruína bovarista... Emma tenta a religião, o casamento, o consumo, o sexo, mas nada a satisfaz. Protótipo dos atuais –holics, ela é shopaholic, sexaholic; ela é saco emocional sem fundo. Moderna pra caramba! Hoje provavelmente enviaria fotos febrilmente ao Istagram com seu celular de última geração, comprado a prazo, exibindo uma felicidade que nem de longe conhece.
Emma é “ridícula” assim, mas Flaubert não fala só dela, embora o nome da obra seja Madame Bovary. Todos são medíocres frustrados; vence quem sabe usar, camuflar melhor a obtusidade. Não é à toa que Homais com seu conhecimento enciclopédico superficial sobre tudo se dá melhor que todos, mas não custa lembrar que foi essa pseudo-erudição que custou a perna de Hyppolyte. E quantos Homais pós-modernos, cuja Ilustração vem de ler os títulos das postagens em redes sociais.
Fácil taxar Madame Bovary de ridícula e alienada, mas com a marcha célere do consumismo, da espetacularização, da artificialização e reificação dos relacionamentos em todas as esferas, quanto do vazio e da desorientação da personagem nós mesmos não experienciamos e compensamos com algum subterfúgio? Chame-o vício, chame-lo devaneio, chame como quiser, mas quanto de angústia por algo diferente sem saber bem o que, não temos nesse mundo tão complexo que não podemos compreender? Por ser mulher e ousar procurar uma brecha utópica na estrutura, Emma pagou caro e os capítulos dedicados a sua agônica morte estão entre as punições mais dolorosamente exemplares já lidas, além de fornecerem passo e compasso pro Naturalismo. E quem disse que Emma Bovary era tão alienada assim? Ela sabia direitinho o preço que pagavam as mulheres, por isso não queria ter filha. Mas, teve.
Por isso gosto tanto de literatura do século XIX: pra conhecer meus trisavôs e porque que a gente é assim.

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