segunda-feira, 12 de março de 2012

“NINGUÉM VAI TE OLHAR TODA VEZ E PENSAR QUE VOCÊ É ALBINO”

Luciana Gonçalez decidiu dividir um pouco de suas experiências albinas conosco e escreveu um texto muito sincero e generoso. Não se preocupe que não ficou nada brega, Luciana!


Nasci albina (claro, rs), mas demorei bastante para entender o que isso significava. Nem lembro de verdade quando ou como foi. Acho que foi aos poucos... Uma informação aqui, uma observação ali, uma constatação acolá e o cenário sendo desvendado em capítulos.
Embora meu pai e seus dois irmãos fossem albinos, o assunto albinismo sempre foi tratado com desconforto e na surdina pela nossa família. Não se sabe se antes de meu pai e meus tios houve algum caso de albinismo entre os familiares. Desconfio que meu bisavô fosse albino, já que meus pais se lembram de que ele era muito loiro, muito branco, com a cara muito vermelha e de olhos azuis. Entretanto, como nossa descendência é toda europeia, fica difícil saber se ele era albino mesmo ou apenas loiro...
O que sei é que meu pai e seus irmãos foram ensinados - inclusive por esse meu bisavô possivelmente albino - por meio de piadinhas jocosas ou comentários inapropriados, a verem o albinismo como uma característica ruim e a tentarem “dissimulá-lo”, negá-lo, ignorá-lo.
Apesar disso – e até hoje não entendi porque -, meu pai se casou com uma prima de 1º grau, o que tornava muito elevada a chance de gerarem filhos albinos. Minha mãe nunca se importou com isso, em parte porque ela é de fato uma pessoa sem qualquer tipo de preconceito e em parte, creio eu, porque até hoje não compreende bem o grau de nossas dificuldades.
Mas, meu pai, por ter – perdoem a piadinha – sentido na pele o que é ser um albino, especialmente nas circunstâncias em que foi criado, não queria ter um filho albino. E hoje o compreendo, embora não concorde, e sei que isso não tem nada a ver com ele me amar. O problema é que minha mãe, acho que para se vangloriar de ser menos preconceituosa do que ele – ou para insinuar que me amava mais – me contou isso quando eu ainda era criança e repetiu inúmeras vezes. Imaginem que beleza saber que meu pai e meus familiares próximos não queriam que nascesse mais um albino...
Foi encarando o albinismo sob essa perspectiva que cresci. E, tirando o uso de prrotetor solar, cresci também sem nenhum acompanhamento especial, ótico, ortóptico, dermatológico ou psicológico. Nenhum professor meu jamais foi orientado de que eu precisava de auxílios óticos pois era deficiente visual. Nem mesmo eu fui... Segui minha infância e minha adolescência me virando sozinha para estudar, sem jamais ter enxergado a lousa, mesmo sentada na primeira carteira.  Tinha que me virar com minhas dificuldades, pois não era correto expô-las.
Quando era criança me levantava e ia olhar o que estava escrito no quadro, depois voltava, sentava na carteira e escrevia o que havia memorizado, então me levantava de novo e ia ler o resto. Certamente, nem alunos e nem professores entendiam o que eu fazia. Tive até uma professora que me repreendia, dizendo que eu atrapalhava os outros alunos... Eu não sabia explicar minha necessidade, tinha medo e, principalmente, vergonha. Por isso, fui aos poucos tentando memorizar uma quantidade cada vez maior de informações, pra ter que ir com menos frequência até a frente da sala.
Tinha amiguinhos na escola, mas eles nunca eram os da minha classe, porque esses eram os que viam que eu tinha que levantar pra ler o quadro, assim como nas aulas de educação física viam o quanto eu era péssima em esportes (era aquela que é sempre escolhida por último). Ou seja, meus coleguinhas de classe eram aqueles que sabiam que eu era diferente para além da aparência, por isso deles eu tinha vergonha. Eu só era amiga das crianças de outras turmas, aquelas que eu conhecia no ônibus escolar e que não conheciam minhas limitações.
Claro que piadinhas quanto à minha brancura fatalmente aconteciam, pois crianças são mais sinceramente cruéis do que adultos. Porém, no ambiente escolar eu até que conseguia me sair bem – acho que porque era bravinha – e não posso dizer que sofri bullying na escola. Bullying mesmo só na rua, de transeuntes que por motivos estranhos gostam de gratuitamente ofender os outros...
Na escola, era mais o medo de parecer estranha, não só pelo aspecto físico diferente, como pelas outras estranhezas comportamentais decorrentes da deficiência visual, que me levava a um total medo de rejeição por parte dos colegas. Esse estresse emocional deixou resquícios... Mesmo hoje, me sinto angustiada num ambiente de sala de aula e travo, ficando tão tímida que beira o antissocial.
De qualquer forma, enquanto criança conseguia dosar um pouco minha timidez e ter até bastantes amiguinhos. O que me incomodava mesmo era a questão do problema visual.
Na adolescência, a questão da aparência física - e de toda a atenção e curiosidade que ela despertava - também começou a incomodar... Daí, na escola eu já não tinha mais coragem de me levantar para ir ler o que estava na lousa e fui obrigada a desenvolver outra técnica: ouvir a aula e tentar transcrever pro caderno tudo o que era dito. (Na faculdade atingi a perfeição! Não fosse pelo fato de o professor estar vivo, eu poderia dizer que psicografava a aula!).
Sempre fui boa aluna, a “nerd”: queridinha dos professores e com boas notas. Como meu pai e tios eram formados e bem sucedidos profissionalmente, jamais passou pela minha cabeça ver a deficiência visual como fator limitante do meu desenvolvimento intelectual ou cultural.
Claro que para quem não enxerga a lousa é bem mais penoso absorver o que está sendo explicado. Requer atenção dobrada. E ler qualquer coisa requer esforço dobrado, porque “a vista” cansa rápido, você sente dor de cabeça etc e tal.
Mas, acho que a postura da minha família quanto ao albinismo em certa medida me ajudou, ao menos nos campos dos estudos e do desenvolvimento profissional... Afinal, se não podíamos falar sobre nossas limitações, também não podíamos nos escorar nelas para justificar qualquer fracasso ou desistência. E foi assim que segui meus estudos, cursei faculdade, tive bons empregos e fui evoluindo profissionalmente.
Mas no campo das relações interpessoais e, principalmente, dos relacionamentos amorosos, aquela forma de lidar com o albinismo (não lidando com ele) em nada ajudava... Conforme a adolescência ia chegando, eu ficava cada vez mais insegura quanto à minha aparência e aceitação social... Dos 12 aos 15 anos posso dizer que praticamente não tive amigos. Foram os anos em que senti de fato solidão. Tornei-me totalmente insegura e por isso estava sempre na defensiva. Qualquer olhar ou qualquer comentário me incomodava. Não, mais que isso, me feria profundamente. Foram anos bem difíceis...
A coisa foi melhorando aos poucos depois que me mudei pra São Paulo ( esqueci de mencionar que sou de São José dos Campos). Numa grande metrópole as pessoas reparam menos umas nas outras e estão mais acostumadas a conviver com as diferenças. Eu me sentia um pouco menos observada e avaliada aqui.
Fiz alguns poucos amigos (não na faculdade, que em ambiente escolar, como disse, travo totalmente) e tive meu primeiro namorado, um relacionamento sério e longo, que me ajudou bastante com o meu problema de autoestima. Mas não o suficiente.
Precisava entender o que era o albinismo para saber quem eu era. E fui atrás disso. Li até tese de doutorado de aluno da USP sobre o assunto.
Mas, também precisava conversar sobre minhas dificuldades e aflições. Mais do que isso, aliás: precisava conhecer outros albinos, que não só entenderiam o que eu sentia, como poderiam me dar uma visão emocional diferente da que "aprendi" com minha família sobre a situação. Eu precisava de outras referências.
Então, em 2005, encontrei a comunidade do Orkut “Albinos do Meu Brasil”, criada pela Dre (Andreza Cavalli), que me permitiu encontrar essas outras referências. Conheci outras pessoas albinas das quais fiquei amiga por causa do albinismo e das quais continuo amiga por afinidades além.
Para mim, toda aquela troca de informações, percepções, confissões e experiências ajudou muito a exorcizar vários fantasmas internos e a fortalecer minha autoestima.
O contato com outros albinos, mais o meu próprio desenvolvimento na vida, fazendo amigos, obtendo êxitos, e – certamente – o amadurecimento foram me fazendo ver as coisas sob outra perspectiva.
Claro que sempre fica alguma coisinha marcada no inconsciente e que as vezes se manifesta... Como disse, ainda me sinto desconfortável em ambientes que remetem ao escolar; também ainda receio a sinceridade cruel das crianças e a coragem zombadora dos seres humanos quando estão em turma, mas me sinto bem resolvida com a minha “condição albina”.
Na verdade, nem sei me imaginar de outra maneira... Já fui questionada se gostaria de deixar de ser albina se surgisse uma “solução para isso” e respondi que não. Por mais que encha o saco ter que passar protetor solar a toda hora, ser albina faz parte da minha identidade.
Hoje, por um acaso da vida, namoro um rapaz também albino. Não o namoro porque seja albino. Aliás, quando conheci os branquinhos da comunidade, costumava comentar com as meninas que jamais ficaria com um rapaz albino, porque homens albinos me remetiam à família, me lembravam meu pai e meus tios. E não era demagogia, pois não “fiquei com um albino”. Fiquei com um rapaz que era meu amigo há anos e com o qual me identificava pelo que está por dentro, não pelo que está por fora. Na verdade, nem me lembrava mais que ele era albino... Quando olhava pra ele via outras coisas, não a cor da pele e do cabelo.
E é isso que temos que ter em mente. Quando as pessoas olham pra gente da primeira ou segunda vez, sim, elas veem pessoas extraordinariamente brancas. Mas, ninguém vai te olhar toda vez e pensar que você é albino. Aos poucos, as pessoas vão te olhando e vendo outras coisas... As que você mostrar.
Tenho uma amiga que diz que tudo na vida é uma questão de perspectiva, ou seja, que é a maneira como lidamos com os fatos de nossas vidas que determina o quanto sofremos. E ela tem toda a razão. Pena eu não ter entendido isso antes...
Não quero transformar esse “depoimento” num texto de autoajuda, porém gostaria de finalizar bregamente dizendo que o que pode nos limitar é mais o psicológico do que o físico... Pensem nisso!

Um comentário:

  1. Olha só!!!! No trabalho o vídeo ficava bloqueado... Só agora que vi (e ouvi) que é "minha música". Rs. Obrigada!

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