segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

CAIXA DE MÚSICA 247

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Roberto Rillo Bíscaro

Kate Bush fez apenas uma turnê em sua carreira iniciada oficialmente, em 1978, com o álbum de estreia. A Tour Of Life - de 2 de abril a 13 de maio, de 1979 - foi sucesso de público e crítica com sua mistura de música, magia, dança e leituras. Ninguém utilizara a tecnologia wireless no palco, permitindo que cantasse enquanto dançava. Exaustão e a morte de um técnico são possíveis razões para que desde então a mulher mais importante da história da música britânica apresente-se ao vivo apenas esporadicamente, quase sempre para promover seus álbuns, cada vez mais raros a partir de 1989.
Longe dos palcos, Bush trancou-se em estúdios e produziu grandes e complexos álbuns. Conforme os discos rareavam, suas aparições públicas também. Seu feroz sentido de privacidade aliado à densidade de sua obra originaram toda sorte de rumores em tempos onde celebridades se mostram cada vez mais e esforçam-se para parecerem “comuns”. Kate Bush enlouqueceu; Kate Bush está morbidamente obesa; Kate Bush bebe.
A mística e o respeito são tão vastos, que quando Bush anunciou série de 22 espetáculos no Hammersmith Apollo Theatre, em Londres, em 2014, os ingressos esgotaram-se em minutos. No dia da abertura, 26 de agosto, fãs ansiosos na porta do teatro, não poucos vindos do exterior. Celebridades 80’s como Marc Almond e Holly Johnson; famosos mais abrangentes, como David Gilmour e Peter Gabriel e outros foram constantes durante a temporada de concertos. A imprensa saudou Before The Dawn (nome do show) como a Segunda Vinda; o crítico musical da BBC ainda não conseguia conter o entusiasmo na manhã seguinte, no programa Breakfast.
Prometeu-se CD/DVD de experiência, mas até agora só recebemos o primeiro formato. Before The Dawn foi lançado em CD triplo dia 25 de novembro e não é aconselhável para quem busca um Greatest Hits Live. Não há nenhum trabalho dos quatro álbuns iniciais, o que significa que Wuthering Heights e Babooshka estão ausentes e mesmo dos álbuns que tiveram canções executadas, nem sempre as mais conhecidas estão na setlist.
Tecnicamente, Before The Dawn é irrepreensível. Felizmente a tecnologia permite que sons de estúdio sejam fielmente transpostos para o palco e para uma artista como Bush isso faz toda a diferença. Ressaltando o trabalho em equipe, o álbum vem creditado para The K Fellowship, mas alguém deixará de dizer “o novo álbum de Kate Bush”? A Confraria K tem músicos do calibre de David Rhodes (guitarra) e Omar Hakim (bateria), mas quem manda é The Venerable Kate Bush, como dizem alguns setores da imprensa de sua terra natal. Ela controla sua carreira desde o início dos 80’s e Rhodes afirmou que no primeiro contato telefônico Bush já sabia o que queria. Isso não significa que não preze sugestões, mas a palavra final é dela.
Talvez por nunca ter feito turnês, sua voz continua perfeita; um tiquinho mais grave, mas é de esperar de uma mulher de 54 anos à época. Quem sabe não tenha sido excelente ideia deixar para trás a estridente Wuthering Heights? Assim, a manteremos eternamente na memória com aquela voz de menina, para a qual foi composta.
Consoante com a teatralidade do espetáculo – codirigido por Adrian Noble, dirigente da Royal Shakespeare Company por mais de uma década (Kate pode!) – os CDs são nomeados como atos. O 1 traz canções mais “soltas” que não fazem parte de narrativa maior. Bush esnobou grandes sucessos, mas não foi boba quanto à ordem. Abrindo com a trinca Lily, Hounds Of Love e Joanni (um tantinho mais rápida que no álbum de 2005), a cantora ganha a plateia, que, verdade seja dita, provavelmente aplaudiria histérica se Bush lesse uma receita de bolo. Artista e público estão extáticos, dá gosto ouvir. Running Up That Hill (A Deal With God) é tão idiossincrática, daquelas canções reconhecíveis no primeiro acorde, que seria estupidez tentar mudá-la. Kate sabe que fãs a querem o mais próximo possível da experiência que nos arrepia desde 1985 e é assim que está em Before The Dawn. A plateia urra microssegundos após o músico botar o dedo no teclado, PC ou seja o que usaram no palco. Extraordinário. A surpresa foi a introdução de Never Be Mine, ausente de qualquer noite de apresentação no Apollo. Significa que há material ensaiado e não usado e que pode ser lançado ou vazado.
O Ato II é a suíte The Ninth Wave, lado B de Hounds Of Love (1985). Constituída por curtas faixas interconectadas, é odisseia sônica em variados ritmos (tem até trecho com “sambinha japonês”), cheia de efeitos de estúdio. A misteriosa letra sobre a noite de uma náufraga, com alucinações e visões do passado e do futuro gerou inúmeras interpretações significativas, que vão até para o lado da reencarnação, o que não deixa de fazer sentido. The Ninth Wave agrada amantes de rock progressivo e é atestado do controle que Bush sempre teve sobre sua direção artística. Não era para qualquer um ocupar lado inteiro de um LP com complexo trabalho conceitual, arriscando não vender muito. The Hounds Of Love chegou ao topo das paradas inglesas.
A responsabilidade para levar isso ao palco era enorme, mas nada se perdeu dos detalhes e filigranas dos arranjos. Na verdade, a adição da faixa Little Light realça a agonia da mulher apavorada em alto-mar; dá um dó! Se há alguma “reclamação” é a presença da faixa dialogada Watching Them Without Her, que funcionou bem quando se estava presente ao espetáculo teatral, mas quebra o fluxo emocional para o público da plataforma apenas sonora. Nada que não se conserte duplicando os arquivos e montando uma pasta só com as canções e outra com o álbum completo (deletar Kate Bush, jamais!). Relatos dão conta de que quando Kate desferiu o doce “Little light shining/Little light will guide them to me/My face is all lit up” ao som de piano, na abertura de And Dream Of Sheep, lágrimas escorreram de muita gente. Ouvir o ACT II explica perfeitamente o porquê e ao final ouvimos uma plateia que não cabia em si de encantamento.
O Ato III traz a suíte A Sky Of Honey, do álbum Aerial (2005). Os madrigais de cordas e teclados, a profusão de pássaros e sinos, o estouro do flamenco – nessa sinestésica história de um dia ao livre – é tudo tão bem executado, tão lindo, que mesmo quem não pôde ver o show intercala momentos de puro abandono na fluidez melódica, de pasmo por tanta expertise, de frenesi quando os violões espanhóis irrompem e a plateia explode em palmas. Irretocável e de encher os ouvidos como na versão de estúdio. De quebra, a inédita em estúdio Tawny Moon, cantada pelo filho Bertie: a canção é linda, a voz do menino de 16 anos ainda precisa maturar. Ela poderia ter chamado Natasha, filha da Tori Amos. Encerrando, Cloudbursting, apoteose bombástica para uma plateia em transe que ovaciona espetáculo memorável, que sonoramente foi perfeitamente traduzido em Before The Dawn. 

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