quarta-feira, 20 de julho de 2016

CONTANDO A VIDA 155

UM RÉQUIEM PARA OS MORTOS EM NICE...

José Carlos Sebe Bom Meihy

Escrevo amargurado, triste, ainda sob o impacto dos recentes acontecimentos de Nice, linda cidade balneária a sudeste da França, banhada pelo Mediterrâneo. Residência de milionários, donos de mansões suntuosas, a até então pacata mais pareceria um vilarejo, um cromo, cartão postal convidativo ao turismo tranquilo à gouche do alarido das grandes metrópoles europeias. O alarmante número de 84 mortos e mais de 100 feridos, abatidos por um caminhão acelerado, em velocidade progressiva, abriu uma ferida feia na reputação regional.

Era para ser festa, e o famoso Boulevard des Anglais, ladeado de palmeiras exuberantes, seria palco da manifestação cívica mais prestigiosa da França, o 14 de julho, dia em que se comemora a Queda da Bastilha em 1789, marco da Revolução Francesa. Muito mais feia, porém, é imagem redesenhada pela Polícia Francesa que não conseguiu previr o estranho ataque. É verdade que seria difícil prever qualquer atitude transloucada, mas a coleção de atentados com sucesso mostra que algumas medidas deveriam ser tomadas, em particular no que toca à vigilância de espaços em dias de significação nacional e patriótica. Um dos pontos de estrangulamento das explicações corre por conta dos dois quilômetros percorridos pelo caminhão alugado, com prazo vencido, e que conseguiu passar por duas barreiras de soldados. Como isso se deu?

Sabe-se que o esforço internacional tem barrado muitos atos que se armam sob a chancela do autodenominado Estado Islâmico (EI), em particular na Europa Ocidental. O alcance positivo dessas medidas, no entanto, tem motivado reações diversas e de impacto nos segmentos mais exaltados. Com investidas isoladas, autônomas, e sem o suposto preparo, os ataques trocam as elaborações complexas por medidas individuais, não menos loucas, aliás. Com isso, garante-se a multiplicação de atos isolados, de ativistas solitários, donos dos próprios planos. O pior é que mesmo se assumindo o fracionamento desses jihadistas, os resultados não perdem o efeito avassalador, numérico e cada vez mais atemorizante. Com certeza, eles vão se multiplicar. 

Há algo mais a dizer sobre tal evento: pode ser uma atitude terrorista sim, mas também cabe pensar em impulso individual, desesperado. O jovem de 31 anos, Mohamed Lahouaiel Bouhiel, aparentemente não tem ligação com membros do EI. Sequer a responsabilidade ainda foi assumida. Em processo de divórcio, com três filhos e muitas dívidas, o atacante, segundo vizinhos e conhecidos, era deprimido e dono de atos esporádicos de violência, com passagens pela polícia. Mas, tudo isso parece pouco ante a ligação mecânica que se faz com atos terroristas. Contudo, chama-se a atenção para outro ângulo do problema: a ligação imediata entre situações como essa e o mapa do terrorismo internacional. A mera possibilidade desse ser um ato isolado convida a pensar no pânico instalado no mundo. Não se deve também desprezar o fato de existirem manifestações recortadas, de grupos localizados. É erro dramático simplificar tudo e propor que vivemos uma guerra religiosa, como se fora um jogo de cristãos X muçulmanos. Cabe lembrar que o islamismo é pacifista e não é justo colocar no mesmo nível grupos que tem, no mesmo credo,  opções tão diversas. Conheço muitos mulçumanos que reprovam com veemência os atos terroristas.

Mas o grito de dor é inexorável e o medo justificável. Ele é real, e, frente a contabilidade dramática dos mortos temos que perguntar: o que aprendemos com isso tudo? O que se pode fazer, além do medo crescente? E as respostas se fazem de forma mansa, começando pelo apelo da não simplificação dos acontecimentos. O julgamento apressado pode acirrar um dos fenômenos mais crescentes da nossa realidade: o ódio defensivo. Façamos um réquiem para os mortos e em nome deles, na penúria dos que ficam, tentemos um posicionamento, crítico sim, atuante também, mas sereno e vigilantemente inteligente. 

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