sexta-feira, 27 de maio de 2016

PAPIRO VIRTUAL 106

Roberto Rillo Bíscaro

Há alguns anos a Biblioteca Pública Municipal de Penápolis (SP) desenvolve o projeto Literatura em Foco, que aborda obras da lista de livros pedidos nos vestibulares da USP e UNICAMP. Professores de literatura e diletantes são convidados a analisá-los. Colaboro sempre que posso; já dei aulas sobre Memórias de um Sargento de Milícias e Vida Secas a alunos muito interessados, anotadores e inquisitivos.
Dia 9 de junho, falarei sobre a peça O Rei da Vela, escrita por Oswald de Andrade em 1933, publicada em 1937, mas encenada apenas 3 décadas depois, pelo Teatro Oficina. O retrato do agiota Abelardo, rei da primitiva vela nos tempos da moderna eletricidade, e sua aliança com setores decadentes da aristocracia rural e sujeição ao ianque Mr. Jones infelizmente cai no chavão “mais atual que nunca”.
Na sanha de atacar a burguesia com suas recentemente adquiridas ideias marxistas, Oswald carrega nos tons grotescos pra representar essa classe. Um dos traços de decadência dos ricos e poderosos seria a libertinagem sexual, mas o que interessa aqui é a homossexualidade.
Os 3 filhos do fazendeiro falido Coronel Belarmino são nomeados com alusões a sua sexualidade: Totó Fruta do Conde; Joana, conhecida como João dos Divãs e Heloisa de Lesbos. O primeiro é uma bichona louca que fala no feminino; “sou uma fracassada” repete em forma de bordão mais pertinente em comédia de Arthur Azevedo do que na pretendida vanguardice d’O Rei da Vela. Joana parece ter a alcunha apenas pra chocar, porque a personagem sequer age segundo essa homo-orientação. Heloisa tem seu nome advindo da ilha onde nasceu a poetisa grega Safo, famosa por poetizar o amor entre mulheres. É preciso explicitar que da ilha de Lesbos vem a palavra lésbica? Heloisa entra no palco vestida de homem, mas a peça inteira passa nas mãos de Abelardo e de Mr. Jones.
O uso da homossexualidade como sinal de decadência vem da ideia de que é um “desvio” da sexualidade considerada “normal”, a saber a heterossexualidade monogâmica. Muito dessa patologização nasceu de interpretação equivocada (fraudulenta?) das ideias de Freud, por gente que misturou moral pré-concebida na história. Como a maioria nunca leu o Pai da Psicanálise, mas apenas ouviu dizer de seus genéricos, a noção de homossexualidade consagrou-se, tanto na direita, quanto na esquerda. Nos anos 70, a Associação Norte-Americana de Psiquiatria tirou a homossexualidade de sua lista de enfermidades, mas não são poucos os que ainda a consideram como tal.
(Re)Lendo alguns textos sobre O Rei da Vela pra fermentar a aula, não me surpreendi que críticos das antigas, como Décio de Almeida Prado e Sábato Magaldi dancem a música de Oswald acriticamente e apontem a homossexualidade como um dos sintomas da “sujeira” burguesa. De outra geração, até dá pra entender suas noções; embora compreender não anule o lamentar. Menos inteligível é a aceitação passiva dessa ideia preconceituosa em trabalhos que se querem mais modernos como a dissertação de mestrado O modernismo teatral de Oswald de Andrade: uma análise da peça “O Reida Vela”, de Fernanda de Miranda Martins, que, tão recentemente quanto 2008 compra sem pestanejar a noção de homossexualidade como sintoma de decadência.
Não se trata de caçar bruxas e queimar Oswald de Andrade na fogueira da correção política anacrônica, como quiseram fazer com o racismo de Lobato no episódio das Caçadas de Pedrinho. Pedir o banimento de sua obra é tão retrógrado quanto o ambiente descrito na peça, mas é preciso problematizar essa posição do autor nas análises e quiçá nos exames vestibulares passíveis de terem questões sobre a obra.
Que ele tenha usado esse traço como sinônimo de sem-vergonhice não significa que devamos aceitar. Antes, qualquer análise deve ressaltar o limite tanto de direita quanto de esquerda de lidar com a homossexualidade e a dificuldade histórica que essa orientação sexual tem enfrentado. Sem essa discussão e admissão, difícil pensar num mundo menos discriminatório contra albinos, gordos, mulheres, afrodescendentes, porque enquanto houver um grupo discriminado, a sociedade será potencialmente preconceituosa em relação a tudo considerado desviante ou diferente.

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